A MORTE COMO UM FATO

astronautfloral
5 min readDec 12, 2023

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A MORTE EXPOSTA de Lewis Thomas

Lewis Thomas (nascido em 1913–1993), biólogo e ensaísta norte-americano, dedicou toda a sua vida à busca do sentido profundo dos diversos fenómenos vitais. Seus estudos revelaram novas maneiras de abordar as grandes questões da sobrevivência, da morte e da evolução. Entre seus livros mais célebres estão As vidas da célula (1974) e A medusa e o caracol (1979).

Lewis Thomas aborda a morte como um acontecimento natural no âmbito de um ecossistema. Nunca vemos um animal morto jazendo no bosque, diz ele, porque o material orgânico é imediatamente reciclado para voltar para os vivos. Em certo sentido, nosso planeta é um organismo vivo. Dessa perspectiva cosmológica, sua vida depende do intercâmbio e da reciprocidade entre os vivos e os mortos. Desse modo, a morte é despersonalizada e assume uma importância extraordinária.

A maior parte dos animais mortos que se vê nas estradas próximas às cidades são cães, e também alguns gatos. No campo, as formas e cores dos cadáveres são estranhas, pois são cadáveres de animais selvagens. Vistos da janela de um carro, eles parecem fragmentos que lembram marmotas, texugos, gambás, ratos silvestres, cobras e, às vezes, a misteriosa carcaça de um veado.

É sempre um choque de estranheza, em parte pelo súbito ataque de tristeza e em parte pela perplexidade indescritível. É simplesmente espantoso ver um animal morto numa estrada. Não é o lugar em si, meramente, o que causa a indignação, mas a impropriedade de uma morte tão visível em qualquer lugar. Ninguém espera ver animais mortos expostos publicamente. É da natureza dos animais morrer na solidão; em um lugar afastado, escondido. É errado vê-los estirados na estrada; é errado vê-los expostos em qualquer lugar.

Tudo no mundo morre, mas só conhecemos esse fato como uma espécie de abstração. Se você for a uma campina, à beira de uma encosta, e olhar atentamente ao seu redor, quase tudo o que conseguir avistar estará morrendo, e a maior parte terá morrido muito antes de você. Se não fosse pela constante renovação e reposição que acontecem diante dos seus olhos, todo o lugar se transformaria em pedra e areia sob seus pés.

Há algumas criaturas que parecem não morrer em absoluto; elas simplesmente desaparecem por completo em sua própria progênie. As células simples são assim. A célula se subdivide em duas, em seguida em quatro e assim por diante, e depois de um tempo desaparece o último vestígio. Isto não pode ser visto como morte; excetuando a mutação, os descendentes são simplesmente a célula original, vivendo todo o processo novamente. Os ciclos do limo vegetal têm episódios que parecem tão conclusivos quanto a morte, mas a lesma seca, com seu pedúnculo e corpo fecundo, é evidentemente o tecido transitório de um animal em desenvolvimento; os amebócitos nadadores fazem uso coletivo desse organismo para produzir mais espécimes de si mesmos.

Considera-se que a qualquer instante há um trilhão de insetos na terra, a maioria deles com uma expectativa de vida muito curta, de acordo com os nossos padrões. Alguém estimou que existem vinte e cinco milhões de espécies de insetos suspensos no ar de cada milha quadrada de clima temperado, numa coluna que se eleva por milhares de metros, flutuando pelas camadas da atmosfera como plânctons. Eles estão morrendo constantemente, alguns sendo devorados, outros simplesmente caindo de seus vôos, toneladas deles por toda a terra, desintegrando-se ao morrer, invisíveis.

Quem já viu pássaros mortos, considerando a quantidade avassaladora passível de ser estipulada pela certeza da morte de todos os pássaros? Um pássaro morto é uma incongruência, mais surpreendente que um encontro inesperado com um pássaro vivo, um indício confiável para a mente humana de que algo deu errado. Os pássaros morrem isolados, atrás das coisas, embaixo das coisas, nunca em pleno vôo.

Os animais parecem ter um instinto para morrer sozinhos, escondidos. Mesmo os maiores e mais notáveis encontram meios de se esconder a tempo. Se um elefante tropeça e morre num lugar aberto, a manada não o deixará ali: os outros elefantes o pegarão e arrastarão o cadáver de um lugar a outro, colocando-o finalmente nalgum local inexplicavelmente apropriado. Quando elefantes encontram a carcaça de outro elefante exposta, eles a recolhem metodicamente, osso por osso, e os espalham pelas proximidades, numa pesada cerimônia.

É um prodígio da natureza. Toda a vida da terra morre, o tempo todo, na mesma proporção com que a vida nos surpreende a cada manhã, a cada primavera. Tudo o que percebemos disto é a estranha perplexidade, a mosca debatendo-se no chão da varanda da casa de veraneio em outubro, o fragmento de um corpo na auto-estrada. Vivi toda a minha vida sendo perturbado pelos esquilos no meu quintal, que estão por toda parte, durante todo o ano, e jamais vi um esquilo morto em parte alguma.

Talvez seja melhor assim. Se a terra não fosse como é e todas as mortes ocorressem abertamente, com os cadáveres ali para serem olhados, jamais pararíamos de pensar na morte. Podemos esquecê-la durante a maior parte do tempo, ou pensar nela como um acidente a ser de algum modo evitado. Mas isso faz com que o processo da morte pareça mais excepcional do que é na realidade, e mais difícil de aceitar nos momentos em que nós próprios temos de aceitá-lo.

À nossa maneira, nós nos conformamos o melhor possível ao restante da natureza. As páginas dos obituários nos informam que estamos desaparecendo, enquanto os anúncios de nascimento, melhor impressos, no canto da página, informam-nos que estamos sendo substituídos, mas por aí não podemos fazer nenhuma ideia da enormidade da escala. Existem três bilhões de nós sobre a terra e todos os três bilhões devem morrer, na sua devida hora, em algum momento da vida. A enorme mortalidade, envolvendo algo acima de cinquenta milhões de pessoas por ano, ocorre em relativo sigilo. Só podemos saber realmente das mortes que ocorrem em nossas famílias ou em círculos de amizade. Estas, separadas em nossas mentes de todas as demais, tomamos como eventos anormais, anomalias, afrontas. Falamos de nossos mortos em voz baixa; abatidos, falamos evasivamente, como se a morte visível pudesse apenas ocorrer por uma causa particular, uma doença ou um ato de violência, sempre algo evitável. Saímos para levar flores, lamentamos, fazemos cerimônias, espalhamos ossos, alheios aos outros três bilhões que estão na mesma condição. Toda essa imensa massa de carne, ossos e consciência desaparecerá, absorvida pela terra, sem ser reconhecida pelos sobreviventes provisórios.

Em menos de meio século, nossos substitutos terão mais do que duplicado esses números. É difícil imaginar como poderemos continuar mantendo o sigilo, com tamanha profusão de falecimentos. Precisaremos abandonar a noção de que a morte é uma catástrofe, ou algo abominável, detestável, evitável ou mesmo estranho. Precisaremos aprender mais sobre o ciclo da vida no resto do sistema, e sobre nossa relação com o processo. Tudo o que vem à vida parece vir à custa de algo que morre, célula por célula. Deve haver algum consolo no reconhecimento da sincronia, na informação de que todos cairemos juntos, na melhor das companhias.

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