O ESPECTRO DO AMOR

astronautfloral
10 min readJan 11, 2024

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ASSARADÃO, REI DA ASSÍRIA de Tolstói

Tolstói nos brinda com a fábula de Assaradão, um rei movido por sentimentos ordinários de ódio e vingança. Por meio de um acontecimento extraordinário, contudo, ele se torna capaz de viver e experimentar o que seu inimigo, o rei Lailie, sofre em consequência de sua vingança. Esta oportunidade abre para ele uma visão de unidade que transforma todo o seu ser, uma visão que surge de muito longo do plano de sua consciência.

O rei assírio, Asssaradão, tinha conquistado o reino de Lailie, destruído e incendiado as cidades, levado todos os habitantes como prisioneiros para seu próprio país, executado os combatentes, decapitado alguns comandantes e empalado ou esfolado outros, além de ter confinado o próprio rei Lailie numa jaula.

Uma noite, deitado em seu leito, Assaradão pensava em como deveria executar Lailie, quando ouviu, de repente, um sussurro perto da cama. Abrindo os olhos, viu um ancião de barba branca e o olhar sereno.

— Pretendes executar Lailie? — perguntou o ancião.

— Sim — respondeu o rei. — Mas não consigo decidir como vou fazê-lo.

— Mas tu és Lailie — disse o velho.

— Isso não é verdade — respondeu o rei — , Lailie é Lailie e eu sou eu.

— Tu e Lailie são uma só — disse o velho. — Apenas imaginas que não és Lailie e que Lailie não é tu.

— Que queres dizer com isso? — perguntou o rei. — Eis-me aqui, deitado sobre um leito macio, com escravos e escravas obedientes à minha volta, e amanhã festejarei com meus amigos como festejei hoje, enquanto Lailie está sentado numa gaiola feito um pássaro, amanhã será empalado e, com a língua de fora, lutará até morrer, tendo seu cadáver dilacerado pelos cães.

— Tu não podes destruir a vida dele — disse o ancião.

— E que dizes dos quatorze mil soldados que matei, cujos corpos usei para erigir uma muralha? — perguntou o rei. — Eu estou vivo e eles não existem mais. Tudo isso não prova que eu posso destruir a vida?

— Como sabes que eles não existem mais?

— Porque não mais os vejo. E, acima de tudo, eles foram torturados e eu não. Foi tudo mal para eles, mas tudo bem para mim.

— Isso, igualmente, apenas assim te aprece. Torturaste a ti mesmo, não a eles.

— Não compreendo — disse o rei.

— Desejas compreender?

— Sim, desejo.

— Então, vem aqui — disse o velho, apontando para um grande reservatório cheio d’água.

O rei levantou-se e aproximou-se do reservatório.

— Tira a roupa e entra.

Assaradão fez o que o ancião lhe ordenou.

— Assim que eu começar a despejar esta água sobre ti — disse o ancião, enchendo um jarro — , mergulha a cabeça no tanque.

O velho entornou o jarro sobre a cabeça do rei, que a abaixou até submergi-la.

E tão logo o rei Assaradão foi coberto pela água, sentiu que não mais era Assaradão, mas outro homem. E, sentindo-se outro homem, ele se viu deitado em um luxuoso leito ao lado de uma linda mulher. Ele jamais a vira, mas sabia que era sua esposa. A mulher se levantou e lhe disse:

— Meu caríssimo marido, Lailie! Ficaste cansado pela faina de ontem e dormiste mais do que de costume e eu velei teu sono e não te despertei. Mas agora os príncipes te esperam no grande salão. Veste-te e vai ter com eles.

E Assaradão — compreendendo por essas palavras que ele agora era Lailie, e não se sentindo, em absoluto, surpreso, mas apenas perguntando-se como não soubera disso antes — levantou-se, vestiu-se e foi para o grande salão onde os príncipes o aguardavam.

Os príncipes saudaram Lailie, seu rei, curvando-se até o chão. Em seguida, ergueram-se e, à sua ordem, sentaram-se diante dele; e o mais velho dos príncipes começou a falar, dizendo que não era mais possível suportar os insultos do perverso rei Assaradão, e que teriam de entrar em guerra contra ele. Mas Lailie discordou e deu ordens para que enviassem emissários para protestar contra o rei Assaradão. Com isso, dispensou os príncipes e encerrou a audiência. Mais tarde, designou homens notáveis para atuar como embaixadores e os convenceu do que deveriam dizer ao rei Assaradão. Concluída nessa tarefa, Assaradão — sentindo-se como se fosse Lailie — saiu a cavalo para caçar asnos selvagens. A caçada foi bem-sucedida. Ele próprio matou dois e, de volta para casa, banqueteou-se com os amigos e assistiu a uma dança de escravas. No dia seguinte, ele foi para a corte, onde era aguardado por peticionários, litigantes e prisioneiros trazidos a julgamento; e ali, como sempre, decidiu os casos que lhe foram submetidos. Concluída essa tarefa, novamente saiu a cavalo para seu divertimento preferido, a caça. E novamente teve êxito, desta vez matando com suas próprias mãos uma velha leoa e capturando seus dois filhotes. Após a caçada, ele uma vez mais banqueteou-se com seus amigos e entreteve-se com música e danças e passou a noite com sua esposa, a quem amava.

Assim, dividindo seu tempo entre prazeres e obrigações reais, ele viveu dias e semanas, aguardando a volta dos embaixadores que enviara àquele rei Assaradão, que costumava ser ele mesmo. Ainda não tinha se passado um mês quando os embaixadores retornaram com os narizes e orelhas amputados.

O rei Assaradão mandara-lhes dizer a Lailie que o que havia sido feito com eles, os embaixadores, seria feito também com o próprio rei Lailie, caso ele não pagasse imediatamente m tributo de prata, ouro e madeira de cipreste, e não viesse pessoalmente prestar homenagem ao rei Assaradão.

Lailie, antes Assaradão, reuniu novamente os príncipes e pediu-lhes conselhos sobre o que deveria fazer. De comum acordo, todos disseram que deveria entrar em guerra contra Assaradão sem esperar que ele atacasse antes. O rei concordou e, assumindo seu posto no comando do exército, deu início às operações militares. A campanha durou sete dias. Todos os dias o rei cavalgava em volta das tropas para elevar sua coragem. No oitavo dia, seu exército confrontou-se com o de Assaradão num amplo vale cortado por um rio. O exército de Lailie lutou bravamente, mas Lailie, ex-Assaradão, viu o inimigo descer das montanhas em bandos, como formigas, cobrindo todo o vale e subjugando suas tropas. Montado em sua carruagem, ele se lançou ao combate, derrubando e lançando por terra soldados inimigos. Mas os soldados de Lailie contavam-se às centenas, enquanto os de Assaradão era milhares; e Lailie foi ele próprio ferido e feito prisioneiro. Por nove dias ele foi transportado juntamente com outros prisioneiros, amarrado e escoltado pelos soldados de Assaradão. No décimo dia chegou a Níneve e foi enjaulado. Lailie sofria não tanto por causa da fome e do ferimento, mas mais pela humilhação e por sua fúria impotente. Ele sentiu o quanto era incapaz de vingar-se de seu inimigo por tudo o que estava sofrendo. Tudo o que ele podia fazer era privar seus inimigos do prazer de vê-lo sofrer, e assim determinou-se a suportar com bravura, sem um único suspiro, tudo o que lhe pudessem fazer. Por vinte dias permaneceu sentado em sua jaula, aguardando a execução. Viu seus parentes e amigos serem levados à morte; ouviu os gemidos dos que era executados: alguns tinham as mãos e os pés decepados, outros eram esfolados vivos, mas ele não demonstrou inquietação, nem pena, nem medo. Viu a mulher que amava, amarrada e levada por dois eunucos negros. Ele sabia que ela estava sendo tomada como escrava por Assaradão. Isso também ele suportou sem soltar um pio. Mas um dos guardas que o vigiava disse:

— Tenho pena de ti, Lailie. Eras um rei, e no que te tornaste agora?

Ao ouvir estas palavras, Lailie lembrou-se de tudo o que havia perdido. Agarrou-se às grades de sua jaula e, desejando matar-se, bateu a cabeça contra elas. Mas não teve forças para ir até o fim e, gemendo de desespero, caiu no chão.

Por fim, dois carrascos abriram a porta da jaula e, depois de prender com força seus braços nas costas, conduziram-no para o lugar da execução, que já estava encharcado de sangue. Lailie viu uma enorme estaca por onde o sangue escorria, e da qual o cadáver de um de seus amigos tinha acabado de ser retirado, e compreendeu que a estaca havia sido colocada ali para a sua própria execução. Despiram-no e ele ficou chocado com a magreza de seu corpo, que um dia fora robusto e belo. os dois executores agarraram-no pelas penas esquálidas, ergueram-no e estavam prestes a deixá-lo cair sobre a estaca.

— Eis a mote, o fim! — pensou Lailie e, esquecido de sua resolução de manter-se heroicamente calmo até o fim, soluçou e implorou por misericórdia. Mas ninguém o ouviu.

— Mas isso não pode ser — pensou. — Com certeza estou dormindo. É um sonho.

Fez um esforço para erguer-se e, com efeito, despertou, para encontrar-se nem como Assaradão nem como Lailie, mas como uma espécie de animal. Ficou perplexo por ser um animal e também perplexo por não tê-lo sabido antes.

Agora pastava num vale, cortando o capim macio com os dentes e afastando as moscas com sua longa causa. Junto dele, um potro cinza-escuro de pernas longas se divertia roçando as costas na grama. Coiceando, arisco, com as pernas traseiras, o potro galopou célere até Assaradão e, cutucando-o no ventre com seu pequeno focinho macio, procurou a teta e, encontrando-a, acomodou-se e começou a sugá-la calmamente. Assaradão compreendeu que era uma égua, mãe do potro, e isso não o surpreendeu nem o incomodou, proporcionando-lhe, pelo contrário, grande prazer. Ele experimentou a sensação de uma grande alegria da vida simultânea — a sua e a de seu rebento. Mas, de repente, algo passou voando perto dele com um som sibilante, atingiu-o no flanco e, com uma ponta afiada, penetrou em sua carne através da pele. Sentindo uma dor excruciante, Assaradão — que ao mesmo tempo era aquela égua — tirou o úbere da boca do filhote e, lançando as orelhas para trás, galopou até o bando do qual se desviara. o potro o seguiu, galopando a seu lado. Eles já haviam quase alcançado o bando que se afastava, quando outra flecha em pleno vôo atingiu o pescoço do potro. A flecha perfurou a pele e se cravou à carne. O potro gemeu de dor e caiu de joelhos. Assaradão não conseguiu abandoná-lo e permaneceu parado, de pé, sobre ele. O potro ergueu-se, cambaleou sobre as pernas longas e finas e voltou a cair. Uma temível criatura de duas pernas — um homem se ajoelhou e cortou seu pescoço.

— Isso não pode ser, continuo sonhando! — pensou Assaradão, fazendo um último esforço para despertar. — Com certeza não sou Lailie, nem o asno, mas Assaradão!

— Quanto tempo? — exclamou o ancião. — Tu mal submergiste a cabeça na água e a ergueste novamente. Vês, a água do jarro ainda nem acabou. Compreendes agora?

Assaradão não replicou, apenas levantou os olhos para o ancião, aterrorizado.

— Entendes agora — prosseguiu o ancião — que Lailie é tu e que os soldados que mataste também são tu? E não somente os soldados, mas também os animais que mataste caçando, e que comeste nos teus banquetes eram tu. Pensavas que a vida morava somente em ti, mas eu removi o véu da ilusão e deixei que visses que, fazendo o mal aos outros, fizeste-o também a ti mesmo. A vida é uma em todos eles e a tua não passa de uma parcela desta mesma vida comum a todos. E somente na parte de vida que te pertence tu podes torná-la melhor ou pior — ampliá-la ou reduzi-la. Somente podes melhorar a vida em ti mesmo pela destruição das barreiras que separam tua vida da vida dos outros seres, encarando os outros como encaras a ti mesmo, amando-os. Fazendo isso, amplias o teu quinhão de vida. Prejudicas tua vida quando pensas nela como a única vida e procurar aumentar teu bem-estar à custa de outras vidas. Fazendo isto, tu apenas a diminuis. Destruir a vida que existe nos outros está além de teu poder. A vida daqueles que assassinaste desapareceu de tua vista, mas não foi destruída. Pensavas aumentar tua própria vida encurtando a dos outros, mas não podes fazê-lo. A vida não conhece tempo nem espaço. A vida de um instante e a vida de mil anos: tua vida e a vida de todos os seres visíveis e invisíveis do mundo são iguais. Destruir a vida, ou mesmo alterá-la, é impossível, porque a vida é a única coisa que existe. Tudo o mais apenas nos parece ser.

Tendo dito isto, o ancião desapareceu.

Na manhã seguinte, Assaradão deu ordens para que Lailie e todos os prisioneiros fossem postos em liberdade e que as execuções fossem suspensas.

No terceiro dia, ele chamou seu filho, Assurbanipal, e passou o trono para ele. Ele mesmo foi para o deserto refletir sobre tudo o que aprendera. Depois, percorreu como andarilho as cidades e aldeias, pregando para as pessoas que a vida é uma só, e que quando os homens desejam fazer o mal a outros estão, na realidade, fazendo o mal a si mesmos.

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"Wherever we go, whatever we do, self is the sole subject we study and learn.” — Ralph Waldo Emerson INFJ 5w6. 4C Study.

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