DEUS EXISTE?
A LINGUAGEM DOS PÁSSAROS de Farid ud-Din Attar
Farid ud-Din Attar converteu-se às ideias do sufismo quando um dervixe itinerante entrou na perfumaria de seu pai e lhe perguntou: “Como poderá a sua mente algum dia se voltar para a morte e renunciar a todos esses bens terrenos?” Em seguida, o dervixr deitou-se e morreu. Conhecido como o maior sábio sufi de seu tempo, Attar compôs cera de duzentos mil versos.
A Lingugagem dos Pássaros é uma epopéia que descreve um caminho para a realidade superior. Os diferentes pássaros personificam os diferentes aspectos da natureza humana. Expõem, em sua maioria, as razões da impossibilidade de empreender a busca de conhecimento. No trecho selecionado, a Poupa, que representa uma visão clara do caminho, repreende o pássaro covarde, argumentando que se lançar no caminho é de interesse para os homens, É preciso, diria Attar, reconhecer as muitas distrações a que estamos sujeitos para fortalecer a vontade e determinar-se nesta busca.
MAHMUD E O LENHADOR
Certa vez em que foi caçar, o rei Mahmud perdeu-se de seu exército e encontrou um velho lenhador que conduzia seu burro carregado de espinheiros. Porém, naquele mesmo momento, o burro tropeçou, derrubando os arbustos sobre a cabeça do velho. Ao ver os feixes no chão, o burro de cabeça para baixo e o homem esfregando a cabeça, o sultão perguntou: “Ó desafortunado!, gostarias de ter um amigo para ajudar-te nesta circunstância?” — “Sim”, disse o lenhador, “é esse o meu desejo, ó generoso cavaleiro! Se me ajudas, trarás benefício sem que tenhas prejuízo, pois vejo que tens o comando de tua parte da graça. Teu feliz semblante é um bom augúrio para mim. Não é de admirar a benevolência da parte de pessoas de feliz fisionomia”. O rei desceu de seu cavalo e, com sua mão delicada como uma rosa, apanhou os arbustos espinhosos, colocando-os ele mesmo sobre o asno; depois montou de novo e partiu. Mais tarde, encontrando seu exército, o rei disse aos soldados: “Um velho lenhador aproxima-se daqui com um asno carregado de espinheiros; obstruam o caminho de forma que ele tenha de encontrar-se frente a frente comigo”.
O exército bloqueou, pois, o caminho do velho lenhador, que se viu assim obrigado a passar diante do rei: “Como poderei atravessar este tirânico exército com meu fraco animal?”, disse o velho para si mesmo. Nesse momento percebeu a tenda real tremulando sob o sol, e viu que o caminho que tomara conduzia-o justamente para lá. O lenhador fez então seu asno avançar para perto do rei; porém, quando reconheceu Mahmud, disse, perplexo: “Ó Deus, em que situação me encontro! Hoje fiz um rei carregar lenha para mim!”
Quando o rei viu o embaraço do lenhador, disse-lhe com benevolência: “Meu pobre amigo, dize-me, qual é tua ocupação?” — “Não brinques comigo, tu já o sabes. Sou apenas um pobre velho, lenhador de profissão. Dia e noite recolho espinheiros no deserto para vendê-los, e no entanto meu asno morre de fome. Podes, se quiseres, dar-me um pedaço de pão”. — “Pobre homem”, respondeu Mahmud, “quanto queres pelo teu feixe de lenha?” O lenhador respondeu: “Já que não o queres de graça e eu não quero vendê-lo, dá-me uma bolsa de ouro”. Ao escutar essas palavras, os soldados gritaram: “Cala-te, insensato! Isso não vale nem dois grãos de cevada, deverias dá-lo por nada”. O velho disse: “De fato, isso não vale nem dois grãos de cevada. Mas, devido ao excelente comprador, seu valor mudou. Quando um homem afortunado como o rei põe as mãos em meus espinhos, eles se tornam cem cezes preferíveis às rosas. Se ele quer, pois, comprar estes espinheiros, deverá pagar ao menos um dinar, e mesmo este preço está aquém de seu valor. O rei involuntariamente deu, pelo contato de suas mãos, preço a meus espinheiros. Eles não tinham valor algum, mas, agora que ganharam dignidade, valem mais que cem vidas.”
CAPÍTULO XVIII: DISCURSO DE UM SEGUNDO PÁSSARO
Outro pássaro disse à poupa:
— Ó gurdiã do exército de Salomão! Sou impotente para empreender esta viagem e muito fraco para tomar este caminho. É necessário percorrer um grande vale e o caminho é difícil; morreria antes do primeiro descanso. Sei que há muitos vulcões nessa rota; não convém a todos comprometer-se nessa jornada. Milhares de cabeças têm rolado ali, como bolas no jogo de pólo, pois muitos dos que foram em busca do Simorg sucumbiram, e seu sangue ainda encharca aqueles vales. Num tal caminho, onde os homens sinceros escondem por temor a cabeça sob a mortalha, o que será de mim, um desgraçado que não é mais que pó?
— Ó tu que estás tão desanimado! — respondeu a poupa — , por que teu coração está tão oprimido? Já que te atribuis tão pouco valor e tens tão pouco tempo neste mundo, que diferença faz que sejas jovem e valente ou velho e fraco? O que poderias temer? O mundo verdadeiramente não é mais que excremento; as criaturas perecem nele a cada porta; os homens entram nele sem abrigo e assim devem deixá-lo, sem abrigo. Milhares de pessoas perecem, como a seda amarelece, em lágrimas e aflição. Mais vale perder miseravelmente a vida nessa busca que definhar na infâmia. Se não triunfarmos nessa busca e morrermos de dor, está bem! foi má sorte; porém, mesmo que sejam inúmeros os erros deste mundo, para que engendrar mais um? O amor pode ser considerado por alguns como loucura; no entanto, é melhor entregar-se a ele que a uma vida de vergonha. Milhares de criaturas estão astuciosamente ocupadas em perseguir o cadáver do mundo. Mesmo supondo que podes fazer isso ingenuamente, não tomes parte nisso. Como farás de teu coração um oceano de amor se entregas a esse comércio, sobretudo com astúcia? Há quem diga que o desejo das coisas espirituais é mera presunção e que não saberíamos chegar onde ninguém jamais chegou. Contudo, não é melhor sacrificar a vida no orgulho desse desejo que deixar o coração afeiçoar-se a uma feira? Vi e ouvi tudo e nada me fez cavilar em minha resolução; vivi muito tempo entre os homens e vi quão poucos há verdadeiramente desapegados das riquezas. Enquanto não morrermos para nós mesmos e não formos indiferentes às criaturas, nossa alma não será livre. Mais vale um morte que aquele que não está morto para as criaturas, pois este último não pode ser admitido detrás do véu. O mahram desse véu deve ter uma alma inteligente. Quando se está envolvido na vida exterior, não se é homem da vida espiritual. Se és um homem de ação, por o pé no caminho e retira tuas mãos das artimanhas femininas. Saiba que mesmo que essa busca de prove ímpia ao final, ainda assim seria necessário empreendê-la, e isso não é fácil. O fruto da grande árvore do amor é a pobreza, e quem quer que o experimente conhece a humildade. Não tomes por fruto o que são folhas. Dize ao que tem folhas que renuncie a elas. Quando o amor se apodera de uma pessoa, rouba-lhe o coração. O amor afoga o homem em sangue e atira-o de cabeça para baixo fora do mundo; não o deixa tranquilo consigo mesmo nem um instante, mata-o e ainda cobra preço do sangue. A águia que o amor dá para beber são lágrimas, o pão que dá para comer tem sangue como fermento. Porém, se em sua enfermidade, o amante está mais fraco que a formiga, o amor empresta-lhe forças a cada instante. De que forma o homem que se debate no oceano do perigo poderá alcançar o pão que lhe salvaria a vida se lhe falta coragem para tanto?
HISTÓRIA DE UM HOMEM CONTEMPLATIVO
Um louco, idiota de Deus, andava nu entre a multidão. Olhando as finas roupas dos homens à sua volta, disse aos céus: “Ó Deus! dá-me belas roupas e faze-me feliz como os outros homens”. Uma voz do mundo invisível fez-se ouvir: “Para isso te dei um cálido sol; senta-te e regala-te com ele”. O majnun disse: “Meu Senhor, por que castigar-me? O sol veste a Ti, não a mim. Não podes dar-me algo mais adequado?” A voz lhe disse: “Espera pacientemente por dez dias e dar-te-ei outra vestimenta”.
O sol queimou o homem durante oito dias até que ele obtivesse uma roupa: porém, como o indivíduo que a havia dado era pobre, a veste que lhe coube era um manto com cem mil remendos. O louco dias costurando estes remendos? Por acaso queimaram-se as roupas de Teu tesouro? Costuraste juntos cem mil vestidos. De quem aprendeste esta arte? Não contaste a Teu servidor onde aprendeste a cerzir tão bem?”
Não é fácil relacionar-se com a corte de Deus. Para isso há que se converter no pó do caminho que conduz a Ele. Muitos dos que chegaram a essa corte vieram de longe, e foram queimados pelo fogo ao mesmo tempo em que eram iluminados pela luz. Após uma longa batalha pensa-se ter atingido o objetivo, somente para descobrir que ele ainda está para ser alcançado.
OUTRA HISTÓRIA SOBRE RABI’AH
Rabi’ah, ainda que mulher, era a coroa que cingia a cabeça dos homens de seu tempo. Certa vez, ela se demorou oito anos em peregrinação à Caaba, medindo o caminho com o comprimento de seu corpo. Quando, por fim, chegou à porta do templo sagrado, disse: “Afinal cumpri o rito de peregrinação”. No dia consagrado, quando estava para entrar na Caaba, Rabi’ah viu-se sozinha e sucumbiu às reclamações de suas companheiras que desertavam. Voltando então sobre seus passos, disse: “Ó Deus! Tu que possuis a glória! Arrastei meu corpo no caminho durante oito anos e, quando o ansiado dia chegou em resposta a minhas preces, colocas espinhos em meu caminho. Permite-me repousar em Tua casa (a Caaba) e não me deixes na agitação de minha própria morada”.
Para compreender a importância deste incidente, terias de encontrar um amante de Deus como Rabi’ah. Enquanto flutuares no oceano do mundo, as ondas te repelirão e te aceitarão, alternadamente. Haverá vezes em que serás admitido na Caaba e outra em que suspirarás ante um ídolo. Se desvias a cabeça deste abismo, gozarás de uma felicidade constante, e a tranquilidade tomará o lugar do terror. Mas, se continuas neste abismo, tua cabeça girará como a roda do moinho, e não encontras em nenhum instante o perfume da paz; uma só mosca bastará para turbar-te.
O LOUCO DE AMOR A DEUS
Era costume de um homem louco de amor a Deus parar em determinada esquina. Certo dia, passando por ali, o célebre rei do Egito lhe disse:
— Vejo em ti uma espécie de habilidade: é a de gozar o repouso e tranquilidade.
O louco replicou:
— Tranquilidade? Como poderia eu encontrar repouso ou tranquilidade se não posso livrar-me das moscas e das pulgas? Durante todo o dia as moscas me atormentam, e à noite as pulgas impedem o meu descanso. Um pequeno mosquito entrou no ouvido de Nemrod e seu zumbido deixou-o louco. Quem sabe seja eu o Nemrod deste tempo, pois tenho por herança, da parte de meu amigo, moscas, mosquitos e pulgas.
CAPÍTULO XIX: DISCURSO EM UM TERCEIRO PÁSSARO
Um terceiro pássaro disse à Poupa:
— Estou coberto e pecados; assim, como posso pôr-me a caminho? Uma mosca impura seria digna do Simorg do Cáucaso? Aquele que, arrastado pelo pecado, desvia a cabeça da via espiritual, como poderia aproximar-se do Rei?
A poupa respondeu:
— Ó pássaro desesperado! Não te desanimes; pede o perdão e a graça eterna! Jogo fora o teu escudo e não busques abrigo em tuas faltas, do contrário tua tarefa será ainda mais difícil. Arrepende-te, pois mesmo que teu arrependimento não seja aceito, ele seria mais útil que a culpa que tomaria seu lugar. A porta permanece aberta para o caminho do arrependimento. Não importa que pecado cometeste, adentra esta porta enquanto podes, pois ela não está fechada para ti. Se entrares com sinceridade neste caminho, a vitória te será fácil.
HISTÓRIA DE UM CRIMINOSO
Um homem culpado de muitos pecados arrependeu-se amargamente e voltou ao caminho reto. Porém, uma vez mais sua alma concupiscente recuperou as forças; anulou sua penitência e entregou-se às suas más inclinações. O homem abandonou novamente o bom caminho e caiu em todo tipo de ações criminosas. Mais tarde a dor apertou-lhe o coração e a vergonha reduziu-o — uma segunda vez — ao estado mais penoso. Desde que o pecado não lhe trouxe mais que desespero, quis arrepender-se de novo; mas não teve forças. Dia e noite, como um grão de trigo na panela quente, tinha o coração cheio de fogo, e com suas lágrimas de sangue lavava o pó que havia manchado seu caminho.
Uma manhã uma voz misteriosa lhe falou:
— Eis o que diz o Senhor do Mundo: “Quando te arrependeste pela primeira vez, perdoei-te e aceitei a penitência; poderia castigar-te, mas não o fiz. Outra vez, quando novamente caíste em epcado, te concedi trégua e, apesar de minha Ira, não te deixei morrer. Pois bem, hoje que reconehces, ó insensato, tua deslealdade, desejas voltar a Mim pela terceira vez. Volta, pois, de boa vontade; abro-te Minha porta e te espero. Quando pagares tuas ofensas com teu arrependimento, teus pecados serão perdoados”