QUEM SOU EU?

astronautfloral
6 min readNov 18, 2023

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FEDRO de Platão

Como disse no início deste relato, dividi cada alma em três partes — duas eram cavalos e a terceira o cocheiro. Assim devemos prosseguir. Disse que um dos cavalos era bom e o outro mau: a divisão permanece, mas ainda não expliquei em que consiste a bondade ou a maldade de cada um, o que farei agora.

Um dos cavalos é bem postado e asseado; tem o pescoço imponente e o focinho curvo; é branco e de olhos escuros; amante da honra, da modéstia e da temperança, amigo da opinião correta; ele não precisa ser castigado pelo chicote: é conduzido apenas pelo comando da palavra. O outro — o mau cavalo — é torto e disforme, faltando-lhe deliberação; tem o pescoço curto e grosso, o focinho chato e cor escura, negra, com olhos de coruja, cinzentos, estriados de vermelho-sangue; é amigo da lascívia e da soberba; suas orelhas, cobertas de pelo, dificultam a audição; por isso só obedece, e mesmo assim dificilmente, ao comando do chicote.

Mas, quando o cocheiro tem a visão do amor e de toda a alma aquecida pela excitação dos sentidos, e está tomado pelos ferrões e cócegas do desejo, o cavalo obediente, agora como sempre governado pelo pudor, abstém-se por si mesmo de saltar sobre o ser amado. Mas o outro, insubmisso aos golpes e exortações do chicote, precipita-se numa corrida, causando todo tipo de problemas a seu companheiro e ao cocheiro, e obrigando ambos a aproximar-se do amado e lembrar-se dos prazeres do amor. Os dois, a princípio, resistem-lhe, indignados, como se fossem induzidos a praticar atos maus e imorais; mas, por fim, diante da persistência, eles cedem e concordam em fazer a vontade do mau cavalo. Então, correm na direção do amado para desfrutar de sua beleza resplandecente.

Á visão do amado, a memória do cocheiro é transportada para a essência da beleza, que ele contempla em companhia da Temperança, sobre o seu pedestal sagrado. Ele vê a beleza, mas sente medo e recua em adoração, forçado a puxar as rédeas com tal violência que ambos os cavalos se detêm: o bom, voluntariamente e sem resistência; o mau, obstinado e muito a contragosto. Ao recuarem um pouco, um dos cavalos é tomado de vergonha e espanto, e toda a sua alma é banhada de suor; o outro, passada a dor causada pelo freio e a queda e tendo recuperado o fôlego com dificuldade, enche-se de ira e repreende energicamente o cocheiro e outro cavalo, declarando que, por moleza e covardia, eles não cumpriram o acordo e desertaram. Passado apenas um breve intervalo, ele os lembra, a golpes, relinchos e puxões, do amado esquecido, obrigando-os novamente, contra a vontade, a se aproximarem dele. E, quando estão próximos de novo, o mau cavalo se precipita, estende a cauda, tensiona o freio e nele crava os dentes sem vergonha. Mas o cocheiro, agora mais em apuros do que nunca, arremessa-se para trás como um atleta diante de um obstáculo e, com um puxão ainda mais violento, comprime as rédeas do mau cavalo, cobrindo de sangue sua língua e mandíbulas, forçando ao mesmo tempo as pernas e ancas a tocarem o chão, castigando-o com veemência. Depois de repetidos castigos, o mau cavalo é domado e se submete, obedecendo aos comandos de seu condutor. Na presença da beleza do amado, ele quase morre de medo, e somente então a alma do amante segue, com modéstia e temor sagrado, aquele que ama.

E assim o jovem que, como um deus, é servido e honrado verdadeiramente por aquele que o ama, não na aparência, mas em realidade, tendo ele também sido despertado para a necessidade de amar seu admirador, mesmo que antes tenha se envergonhado de sua paixão e recusado seu amante porque seus jovens amigos ou outros lhe disseram caluniosamente que cairia em desgraça; e agora a idade, o passar do tempo e a necessidade de amar e ser amado levam-no, de novo, a receber o amante. Porque o destino, ao prescrever que o mau não pode amar o mau, não impediu que o bom amasse o bom em amizade. E o amado, quando acolheu aquele que ama numa doce e íntima convivência, fica espantado com a boa vontade do amante e compreende que o afeto de um amigo inspirado vale pelo afeto de todos os outros amigos ou parentes, estes nada têm em si de comparável a uma amizade como esta. E quando o afeto persiste e ele vê, convive com o amante e o abraça no Ginásio durante os exercícios ou noutros lugares, então surge esta emanação a que Zeus, quando apaixonado por Ganímedes, deu o nome de Desejo [Eros]. Este desejo transborda sobre o amante, uma parte penetrando em sua alma quanto o resto, depois de preenchê-lo, flui para fora; e como a brisa ou o eco ressoa nas rochas lisas e retorna ao se chocar com elas, também a emanação da beleza, entrando pelos olhos — como é natural — e tocando a alma, retorna ao belo. E ali abre as asas da alma, irrigando-as e fazendo-as crescer, inundando também de amor a alma do amante. E assim ele ama, embora sem saber o quê; ele não compreende e não consegue explicar o que lhe aconteceu; ele se parece com aquele que contraiu de outrem a infecção da cegueira e não sabe a causa de sua doença; o amado é o espelho no qual o amante vê a si mesmo sem se dar conta disso. Quando ele está na presença do outro, ambos deixam de sofrer, mas quando está longe ele sente falta do amado assim como o amado sente dele, porque o amado carrega o reflexo do amor, o amor pelo amor [Anteros], alojado em seu peito, que ele diz e acredita não ser amor, mas apenas amizade [phylia], e seu desejo é igual ao desejo do outro, só que menos intenso; ele quer vê-lo, tocá-lo, beijá-lo, abraçá-lo e, assim, não tardará a ver seu desejo satisfeito. Quando os dois se encontram, o corcel indócil do amante tem muitas coisas a dizer ao cocheiro; ele gostaria de ter ao menos um instante de prazer como recompensa pelos tantos sofrimentos por que tem passado; mas o corcel indócil do amado não diz uma palavra, uma vez que está explodindo de uma paixão que não compreende; ele toma o amante nos braços e cobre-o dos mais ternos beijos; e, sempre que estão juntos não tem forças para recusar nada que o amante lhe pede; ainda assim, o bom cavalo e o cocheiro lhe resistem, em nome do pudor e da razão. A partir daí, a felicidade deles depende do domínio de si mesmos; se a melhor parte da alma prevalecer, conduzindo-os a uma vida ordenada e filosófica, eles passarão suas vidas aqui felizes e em concórdia — senhores de si mesmos e ordenadamente -, escravizando a parte viciosa da alma e libertando a virtuosa; e quando a morte chegar, eles estarão leves e receberão asas, porque venceram um dos três combates celestiais ou verdadeiramente olímpicos, conquistando o maior bem que a sabedoria humana ou a loucura divina podem conceder a um homem. Se, entretanto, eles abandonarem a filosofia, e ainda que vivam juntos honestamente, existe a possibilidade de suas almas serem surpreendidas, num momento de embriaguez ou de desordem, pelos corcéis libertinos de um e de outro, sendo levados a consumar o desejo de seus corações numa vida de prazeres, o que para o vulgo é a bem-aventurança; e uma vez tendo desfrutado dela, eles continuarão a desfrutá-la, ainda que cada vez mais raramente, pois estes mesmos prazeres não têm a aprovação da alma inteira. Eles continuarão a ter afeição um pelo outro, mas sempre com menos intensidade do que têm aqueles que verdadeiramente se ama.

Estes, pelo contrário, mesmo acabado o delírio, consideram que fizeram e obtiveram um do outro as promessas mais sagradas e que elas não serão quebradas ( sob pena de sacrilégio), transformando-os em inimigos. Ao fim de seus dias, suas almas abandonam o corpo ainda sem asas, mas, ansiosos por adquiri-las, obtêm uma recompensa nada medíocre por seu delírio amoroso. Pois a lei divina não permite que aqueles que um dia iniciaram a viagem celeste sejam precipitados de novo nas trevas do mundo subterrâneo; eles vivem sempre na luz, felizes companheiros de peregrinação, e, quando chegar a hora de receberem as suas asas, estas terão a mesma plumagem, por causa do amor que os uniu na terra.

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