“Junte a compreensão do Oriente ao conhecimento do Ocidente — e então busque.” (Gurdjieff).
por Jacob Needleman
A ideia de um eu verdadeiro por detrás das aparências constitui a doutrina central de todo grande ensinamento e tradição ao longo dos tempos. Aparece sempre intimamente ligada à ideia de que há uma realidade superior ou absoluta por detrás das aparências, em toda a natureza. No budismo, a natureza búdica, a Mente iluminada, representa a realidade do meu ser e do universo. No hinduísmo, o Atman, o verdadeiro Si Mesmo do homem, é Brahman, o Deus-Criador-Destruidor-preservador Absoluto. No judaísmo o nome de Deus e EU SOU, sendo que o cristianismo reconstitui esta ideia através da doutrina do Espírito Sando, o Eu último (o “Deus pessoal”, o Pai) atuando e sofrendo em meio aos homens. Esta ideia se encontra expressa e desenvolvida em todos os ensinamentos com excepcional riqueza, sutileza e complexidade, especialmente quando se trata de práticas psicoespirituais que orientam a busca de uma experiência humana cada vez mais profunda desta realidade. A ideia geral, enunciada, por vezes, com uma simplicidade de partir o coração, aparece em toda parte, estando ou não em questão a sua experiência.
Pitágoras referia-se a um sol central de todo o cosmos, existente, também, no interior de cada homem. Platão descreve o Ser supremo como o sol interno e externo ao homem, onde a realidade e o Bem são um, consistindo no poder ativo e causal último — a alma do homem, cujo poder é harmonizar todas as funções e aparências da natureza humana individual. Em suma, as ideias se movimentam através da história de nossa cultura como um grande rio, que é alimentado pelas correntes originarias de diversas e variadas mentes e ensinamentos.
Quando a ciência moderna e a abordagem científica do conhecimento se fixaram em nosso mundo, pareceu não haver lugar para essa grande ideia universal do Eu único que se encontra além do mundo das aparências. Do ponto de vista da atividade científica, tratava-se de uma ideia não comprovável, algo que não podia ser visto, um mero objeto de crença. Munidos de uma integridade e honestidade extraordinárias, os primeiros filósofos a articular a visão universal da ciência moderna excluíram, com frequência, esta ideia de suas formulações. Para esses grandes pensadores, o essencial era evitar a fantasia, a tirania mental da crença dogmática e os autoenganos forjados pela metafísica autoritária. Nós, que percebemos agora a limitações desses primeiros filósofos da ciência — por temos acesso a ensinamentos antigos que eles não podiam conhecer — , seríamos tolos se não reconhecêssemos a coragem e o amor à verdade que eles demonstraram ao se recusarem a acreditar em tudo aquilo que não pudessem comprovar por conta própria. A aceitação passiva e mecânica da experiência sensorial, pelo homem contemporâneos, como único parâmetro da verdade não deve ser confundida com a investigação penetrante e ativa desses primeiros filósofos empíricos.
Tal como Descartes um século antes, David Hume, filósofo escocês do século XVIII, procurou separar o conhecimento da aceitação passiva e automática de crenças e especulações sobre a realidade. Hume denunciou, incansavelmente, a escravidão da mente humana aos hábitos psicológicos, sendo significativa, ainda, a influência de sua análise, embora ninguém possa manter esses mesmos padrões rigorosos de honestidade e ceticismo para consigo próprio.
“Existem certos filósofos”, escreveu ele, “que imaginam estarmos a todo momento intimamente cônscios daquilo que denominamos nosso Eu; que sentimos sua existência e sua continuidade na existência; e estão certos… tanto de sua perfeita identidade quando de sua simplicidade.”
Contudo, diz Hume, não existe absolutamente evidência alguma, experiência alguma, quanto a esse chamado Eu; trata-se apenas de uma construção elaborada pelos automatismos da mente a partir de impressões e eventos psicológicos sem nenhuma ligação necessária entre si e muito menos a um eu central unitário.
É necessário observar, prossegue ele, a si mesmo sem paixão, cientificamente; é necessário ser tão empírico em relação a si mesmo como o cientista em relação à natureza externa. Assim procedendo, percebemos que não existe experiência ou impressão alguma de algo como um eu constante e duradouro. “De minha parte”, escreve, “quando penetro mais intimamente naquilo que denomino de eu mesmo, sempre esbarro em uma ou outra percepção particular, seja de calor ou de frio, de luz ou sombra, de amor ou ódio, de dor ou prazer. Jamais consigo captar a mim mesmo, seja em que momento for, sem uma percepção, assim como não posso observar nada senão a percepção. Quando minhas percepções são postas de lado por certo tempo, como no sono profundo, torno-me, nesse período, insensível a mim mesmo, e pode-se dizer, como acerto, que não existo.”
Para Hume, a verdade e as ideias verdadeiras refletem ou espelham realidades experienciais, denominadas por ele impressões. Por este parâmetro científico, não existe ideia verdadeira do eu ou pessoa que persista através do tempo, pois não existe impressão ou experiência alguma de nada semelhante. “Quando alguma impressão dá origem à ideia do eu, esta impressão deve permanecer inalterada por toda nossa vida, dado que o eu deve existir igualmente inalterado. Mas não existe impressão constante e inalterável. Dor e prazer, sofrimento e alegria, paixões e sensações sucedem-se uns aos outros, sendo que nunca estarão presentes todos ao mesmo tempo. Não pode portanto ser de nenhuma dessas impressões ou de qualquer outra que a ideia do eu é derivada e, consequentemente, não existe tal ideia”
Portanto, conclui Hume, o homem “nada mais é do que uma associação ou conjunto de diferentes percepções sucedendo-se umas ás outras com inconcebível rapidez, em um fluxo e movimento perpétuos”. Nada existe de inalterável na psique humana, ainda que por um instante. “A mente é uma espécie de tetro, onde diversas percepções aparecem sucessivamente, passando, tornando a passar, deixando a cena e combinando-se numa infinita variedade de posturas e situações.” Mas, a analogia com o teatro não deve enganar-nos, diz Hume. Não existe lugar algum onde estas percepções e impressões venham à luz e vão embora. Estas efêmeras impressões são a mente, não estão na mente.
O esforço de auto-observação pura e genuína levou o grande filósofo escocês a negar a hipótese mais acalentada e profundamente enraizada em todo ser humano: a crença na existência pessoal como um eu individualizado. É muito tentador, nesse aspecto, comparar as conclusões de Hume com as do budismo. Tal como Hume, Gautama Buda ensinou que a crença humana na realidade do eu é uma doença, um distúrbio do pensamento e a principal causa de toda miséria e ignorância humanas. O paralelo com o budismo empalidece, entretanto, se recordamos que o ensinamento do buda baseia-se na existência de um outro poder da consciência, que ilumina a todos esses aspectos fugazes e fragmentários do “eu” para se referir a esta realidade fundamental da grande consciência, por ser um termo que desperta imagens equivocadas na mente. Não obstante, a grande mensagem do budismo é que além das aparências da natureza e de minha natureza interna existe uma realidade suprema e absoluta ada mente — a consciência, um supremo EU SOU, que não é simplesmente um “eu” u um “ego”. Se um budista se encontrasse com Hume, talvez perguntasse ao filósofo: “ Quem ou o que tem consciência de todas essas impressões e percepções?” “Não houve, entretanto, quem fizesse esta pergunta Hume, esse íntegro pensador.
Hume, na verdade, destruiu a ilusão do eu, uma ilusão cuja destruição também esteve a cargo de grandes mestres do passado. Através desta destruição da ilusão do eu, o homem é levado a compreender que ele próprio é um mundo de aparências, exatamente como o mundo exterior. Desta forma, a grande e eterna ideia da realidade que se encontra por detrás das aparências está implícita em toda parte, em cada pesquisador honesto do eu, incluindo Descartes e Hume, que, sem dúvida, ficariam surpresos ao serem colocados ao lado de Gautama Buda, dos videntes védicos ou de Jalalladin Rumi, bem como de Pitáoras e Sócrates. Não que tenham eles, ou outros dentre os primeiros filósofos modernos, alcançado em si próprios aquilo que alcançaram os mestres do caminho da transformação. Contudo, as ideias introduzidas por estes mestres no caudal da civilização humana percorrem, igualmente, os elevados intelectos dos filósofos.
Quem ou o que tem consciência dessas aparências interiores? É sob esta forma que a grande ideia de uma realidade interna se apresenta a nós quando lemos estes filósofos científicos pioneiros. Quando, porém, esta pergunta se transforma apenas num problema a ser resolvido, tal como ocorre em nosso mundo contemporâneo, a corrente destas grandes ideias antigas cessa seu fluxo. Assim como a ideia de natureza se encontra encoberta pelo problema atual do meio ambiente, a ideia do eu interior encontra-se encoberta pelos problemas contemporâneos da identidade pessoal. “Papel social”< “identidade do ego”, “singularidade pessoal”, “autenticidade” e “autodeterminação” — por aí vai a lista de rótulos e palavras que cercam o “problema do eu”, tal como se manifesta atualmente na teoria psicoterapêutica, ou nos conflitos legais envolvendo a definição de morte ou os direitos dos ainda não-nascidos. Transformamos nossa natureza interior num meio ambiente interior; a reveladora pergunta “Quem sou?” transformou-se no problema de difícil solução do aprimoramento pessoal e da autodeterminação.
Na filosofia de Immanuel Kant (1724–1804), a antiga ideia de uma grande realidade por detrás das aparências recebe uma formulação surpreendetemente nova, graças, precisamente, à honestidade descomprometida e à clareza do ceticismo de Hume. A assombrosa tentativa kantiana de harmonizar os ensinamentos do cristianismo com os ensinamentos da ciência moderna representou, também, um terremoto intelectual sujo impacto se mantém até hoje. Foi a filosofia de Hume, segundo admitiu o próprio Kant, que primeiro despertou o grande pensador alemão de seu “cochilo dogmático”.
Foi a análise do conceito de causa e efeito elaborada por Hume que mais impressionou Kant — mais até do que a destruição teórica de Hume da ideia do eu. A causação, escreveu Hume, significa uma co-nexão necessária entre eventos ou impressões. Tudo o que podemos observar, tanto interna quanto externamente, é que, em alguns casos, A é seguido por B — sejam A e B eventos externos ou impressões internas. Jamais observamos o poder causal; jamais observamos uma força por cujo intermédio determinada coisa acarrete a existência de outra ou necessite da existência de outra. Jamais observamos, jamais enxergamos a conexão necessária, da mesma forma como jamais podemos enxergar o eu. A ideia de causação e a ideia do eu são meros produtos de hábitos psicológicos de nossa mente. Nada existe “lá fora” ou “aqui entro” que lhes seja correspondente.
Kant não pôde negar a integridade da análise de Hume, embora não pudesse aceitar suas implicações, tanto no que tange ao status do conhecimento científico, quanto no que tange ao status da religião bíblica. Como a maioria dos grandes pensadores do início da era moderna, Kant percebeu que a ciência, especialmente do modo como fora formulada por Isaac Newton, consistia na mais elevada forma de conhecimento possível ao homem acerca do mundo exterior. As leis da física estavam alicerçadas em algo eternamente válido — tão válido quanto as leis morais que o próprio Deus revelara à alma de todo ser humano comum. Ainda assim — ali estava Hume, o fato, inegável, de que nenhum homem honesto poderia afirmar ter experienciado a lei da causação da mesma forma como experiência os dados dos sentidos.
O que fazer? Como equacionar esse impossível dilema? As leis do universo são exatas, não caprichosas; não são conveniências temporárias, existe uma ordem inexorável na natureza. Mas não possuímos experiência direta dessa ordem. Sei, com toda a certeza, que todo efeito deve possuir uma causa, embora eu jamais tenha visto ou experienciado um poder causal! Estará a mente humana condenada a falar, eternamente, de coisas acerca das quais não pode estar segura quando busca encontrar as mais profundas verdades com respeito ao real? Não pode ser assim, disse Kant. Em verdade, a nada ele odiava tanto como à filosofia meramente especulativa ou metafísica da fantasia e das realidades imaginárias. Os metafísicos especulativos haviam, por tempo demasiado longo, arrastado o mais nobre esforço da mente humana, a filosofia, ao status de um exagerado devaneio.
A ordem fundamental da narueza não é uma simples teoria com a qual o homem pode entreter-se ou rejeitar a seu bel-prazer. Ainda assim, não possúimos nenhuma experiência direta dela. Newton descreveu a realidade existente acima e além de qualquer preferência individual e subjetiva; entretanto, as leis da natureza não podem ser vistas, sentidas, ouvidas ou tocadas. Newton descreveu as operações de Deus, embora ninguém consiga enxergar tais operações!
A resposta de Kant a esse dilema poderia ser comparada, como ele próprio o fez, à revolução suscitada por Copérnico; a diferença é que esta revolução copernicana referia-se não aos movimentos de planetas e estrelas, mas à própria relação da mente humana com a natureza em si. Até o presente, afirma Kant, o homem compreendeu esta relação de forma inteiramente errônea. Até agora ele acreditou que o verdadeiro conhecimento, as verdadeiras ideias, envolvem a existência de uma espécie de espelhamento mental da ordem natural — a formação de conceitos, na mente, que refletem com precisão a realidade externa. Em nível mais profundo, diz Kant, isso não pode ser verdade. Pelo contrário, verdadeiro é o oposto: A ordem da natureza amolda-se à estrutura da mente! Não se trata aqui de minha mente ou de sua mente, mas da estrutura da mente, a própria razão. A razão estabelece as leis da natureza, e não apenas obedece a elas! No nível mais profundo da ordem natural, a razão representa o princípio ativo e a natureza, o princípio passivo. Tal como Copérnico, que mostrara o movimento dos céus como determinado pelo movimento da Terra, Kant demonstrou que as leis da natureza são colocadas na natureza pela mente e não simplesmente descobertas como algo que existe independente da mente.
“Supôs-se, até agora, que todo o nosso conhecimento deve amoldar-se aos objetos”, escreve Kant em seu prefácio à Crítica da Razão Pura, a obra mais influente da filosofia moderna. Porém, segue Kant, tal suposição deve ser posta de lado no que tange ao nosso conhecimento da ordem fundamental da natureza. Se o conhecimento deve sempre conformar-se aos objetos, jamais poderíamos obter certeza absoluta com respeito às leis básicas da natureza, como a lei da causação. Na verdade, possuímos esta certeza — um universo que não obedeça a tais leis é simplesmente inconcebível — , muito embora não tenhamos qualquer experiência sensorial direta dessas leis.
Temos, portanto, que tentar verificar se podemos ou não ter maior êxito nas investigações da metafísica se supusermos que os objetos devam conformar-se ao nosso conhecimento. Tal atitude estaria mais de acordo com o que é desejado, ou seja, que deveria ser possível se ter conhecimento dos objetos a priori, determinando algo com respeito a eles antes de eles se apresentarem. Deveríamos, então, seguir precisamente as linhas da hipótese básica de Copérnico. Não conseguindo um progresso satisfatório na explicação dos movimentos dos corpos celestes com base no postulado de que estes giravam em torno do observador, ele procurou averiguar se obteria melhor êxito fazendo o observador girar enquanto as estrelas permaneceriam em repouso.
Assim, Kant responde ao ceticismo de Hume argumentando que, quando temos qualquer experiência do mundo, nós — isto é, a mente — já formou o mundo de acordo com determinadas leis fundamentais que regem o funcionamento da razão. Sem estas leis, através das quais a razão opera, não teríamos experiência ou percepção alguma. Hume afirmava que não podemos adquirir nenhuma certeza científica sobre aspectos fundamentais como a causalidade do mundo exterior. Kant responde que possuímos a certeza quando à própria razão, e, uma vez que a razão molda nossa experiência do mundo, podemos ter certeza quanto á forma pela qual o mundo deve apresentar-se a nós. A causalidade consiste num princípio de operação mental; assim sendo, o mundo deve apresentar-se como causalmente determinado. As leis pelas quais a mente opera não são meros hábitos psicológicos dos quais possamos nos livrar. Somos incapazes , por nossa própria constituição, de um ceticismo puro acerca da natureza. Não, estes hábitos são, verdadeiramente, leis da razão e do entendimento; são, portanto, igualmente leis da percepção. Estamos, por assim dizer, condenados à certeza.
Hume e Kant são unânimes em sua aversão à metafísica dogmática e à teologia. Como filhos da era científica, ambos investiram contra o que consideraram os sonhos e fantasias da metafísica especulativa, com suas referências a fontes especiais de conhecimento e a experiências “superiores” de Deus e da natureza. Kant, porém, não ficará com o ceticismo de Hume; devolve a certeza ao conhecimento humano do mundo. Com a diferença de que, agora, não se trata mais da certeza sobre o mundo como normalmente o concebemos. Não, em Kant o próprio mundo é produto da interação da razão humana com algo “lá fora” que jamais poderemos conhecer. Temos certeza, mas é tão-somente certeza quanto à contribuição da razão para a experiência.
É no sentido kantiano do “lá fora” que a antiga corrente das grandes ideias reveladoras circula com mais intensidade em sua filosofia. O conhecimento humano está “condenado à certeza” com respeito ao mundo-objeto, que o próprio conhecimento humano estabelece, através das leis inexoráveis pelas quais ele sintetiza a matéria prima oferecida pelos sentidos. Podemos conhecer somente aparências e conhecer com segurança apenas aquela inevitável contribuição da mente para a estrutura destas aparências. E quanto ao mundo que existe por detrás destas aparências? Não deverá existir uma realidade “lá fora”, um mundo das coisas-em-si, cuja existência independa da mente humana? Podemos conhecê-lo? Será possível, ao homem, obter conhecimento do mundo, da realidade em si mesma, antes ou independentemente de ela ser moldada pelo entendimento humano? Será o conhecimento do mundo real “lá fora” acessível a nós?
Você sabia? Segundo D. T. Suzuki, “Satori é a raison d’être (Razão de ser) do Zen, sem o qual o Zen não é Zen. Portanto todo o esforço, disciplinário ou doutrinal, é dirigido ao satori.” Pra mim, D. T. Suzuki é um daqueles homens superiores que mais se aproximaram da verdade.
A resposta de Kant a essa questão cria uma tensão e uma energia de força inigualável no pensamento moderno. Sua resposta à pergunta: “É possível conhecer o mundo como ele é de fato?” é um majestoso e absolto não. Não podemos conhecer o mundo que se encontra além das aparências; não possuímos experiência da coisa-em-si. A mente se vê eternamente excluída desse mundo. Tudo o que conhecemos chega até nos na forma da matéria prima fornecida pelos sentidos, moldada pelas leis operacionais pelas quais a mente funciona. nossa mente tem uma ideia da realidade que existe além das aparências, mas é apenas uma ideia, um conceito sem “substância” alguma, sem qualquer experiência que o sustente ou dado sensorial que lhe corresponda. Lei causal, tempo e espaço — são todos leis pelas quais a mente opera e molda os dados sensoriais brutos. O mundo como ele é em si — um mundo fora do tempo, onde o tempo não mais existe; um mundo não limitado pelo espaço, um mundo de infinita grandeza e excelência, um mundo liberto de determinismo causal, um mundo de liberdade pessoal e realidade independente — tal mundo pode apenas ser imaginado, nada podemos saber a seu respeito; sequer podemos saber se existe ou não.
Kant dá um outro nome a esse mundo imaginado que haveria além das aparências, chama-o de númeno, do grego nous, o poder do conhecimento direto. Ao dar tal nome a esse mundo, Lant expressa a ideia de um poder mental capaz de conhecer diretamente a realidade em si, sem a mediação dos sentidos. Todavia, declara Kant, o homem não possui este poder de enxergar diretamente a realidade sem a mediação dos sentidos.
É impossível transmitir aqui o brilho e a profundidade irresistíveis com que Kant expõe esse aspecto negativo de sua filosofia na Crítica da Razão pura. Dizem que o dramaturgo Heinrich von Kleist foi levado ao suicídio por esta noção de que o homem está eternamente impedido de conhecer o mundo como é em si. De qualquer modo, o pensamento moderno jamais foi o mesmo desde então. A filosofia moderna viu-se marcada, de forma indelével, pela refutação kantiana da possibilidade de conhecimento metafísico direto da coisa-em-si; e, genericamente falando, não se encontram mais metafísicos em toda parte.
É possível, evidentemente, refutar Kant com uma ou duas observações bastante simples. Toda a sólida estrutura da Crítica da Razão Pura apóia-se em premissas que, de um certo ponto de vista, possuem uma inconsistência quase cômica — como, por exemplo, a insistência de Kant de que não há nenhuma experiência de eventos não causados fora do espaço e do tempo e sua suposição dogmática de que não há, em toda a vida humana, algo como a intuição intelectual.
As dimensões da experiência humana que foram outorgadas nas mensagens míticas e psicofilosóficas dos grandes mestres da gnose na Índia, no Tibete, no antigo Egito na Grécia pitagórica, dos padres bizantinos, dos mestres da Cabala e de inúmeros outros atestam as limitações da visão kantiana. Contudo, esta é uma crítica “corrente acima” — como a que se buscou nos capítulos iniciais deste trabalho. Seria impropriedade e presunção tentar o mesmo aqui. Não somos os mestres do caminho, nem possuímos a experiência a que essas grandes tradições se referem, embora não seja impossível a qualquer indivíduo alcançá-la. Além disso, comparar o pensamento de Kant com o pensamento desses grandes mestres da verdade seria comparar ensinamentos “corrente acima”, voltados para uma vida de transformação pessoal e confrontação interna, com formulações e argumentos que servem como canais, “corrente abaixo” de grande ideias que penetram a vida em geral da civilização humana. Ensinamentos esotéricos não são filosofia. Os primeiros têm sentido especialmente no confronto com “Sócrates”; a segunda desperta no coração do homem a busca de “Sócrates”. A filosofia destina-se a despertar o coração que há na mente; o esoterismo destina-se à transformação do ser. Um grande filósofo, como Kant, não pode conduzir o trabalho de autotransformação; a escala de seu pensamento e a precisão de suas formulações, dentre outras coisas, são totalmente inadequadas a esse propósito, sendo incorreto avaliar na sua filosofia unicamente por tal parâmetro. precisamos de uma apreciação “corrente abaixo” da filosofia, da mesma forma como uma crítica “corrente acima”. A grande filosofia é um canal da verdade percorrendo um sentido descendente a fim de chamar o homem para a busca de si mesmo. Ela para nos portais dessa busca, onde se encontra Sócrates e, atrás dele, Pitágoras.
Pensar ou avaliar a argumentação de Kant na Crítica da Razão Pura não é, portanto, de vital importância. A crítica, de modo geral, deve acompanhar e não dirigir o verdadeiro sentimento. Seja em relação à educação de jovens ou à educação daquilo que em nós é jovem e busca, devemos, antes de mais anda, estimular o amor à sabedoria, a sensibilidade às ideias universais que colocam toda nossa vida comum em questão. Pensar de acordo com novas categorias, divisar a vida segundo uma escala de valores nova e ampla para, através disso, despertar e orientar aquele impulso, na natureza humana, mais profundo e elevado que o ego — eis a função primordial da autêntica filosofia.
Ninguém que leia a Crítica da Razão Pura até o final deixará de se sentir tocado por algo de extraordinário existente ali; algo que aponta profunda e repetidamente para uma outra escala de realidade, no interior da qual o homem vive, transita e leva sua existência. Apanhe o livro por motivos que não sejam acadêmicos ou profissionais e verá. Apanhe o livro após ter-se debatido com as grandes questões filosóficas. Pode-se comprovar a existência de Deus? Exise uam causa primeira no universo? Pode-se dividir a realidade em aprtes infinitamente pequenas? Eciste liberdade em algum lugar na natureza? Se stas perguntas alguma vez o levaram a ponderar sobre o que seja o homem, em que mundo ele existe, de onde ele vem e para onde se dirige, você encontrará, na Crítica da Razão Pura, indicações de que toda nossa vida humana comum e toda a natureza são permeadas por alguma realidade desconhecida; para ter acesso a ela é exigido do homem bem mais do que o exercício do pensamento usual e da razão ordinária, por mais brilahntes e engenhosos que sejam, e, obviamente, muito mais do que a mais intensa das emoções. Todas as suas ideias, toda a especulação que você perseguiu, toda a experiência que amealhou, não são e jamais poderão ser suficientes para colocá-los em legítima relação com o mundo real que há por detrás das — com Deus.
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