O AMANHÃ
A EVOLUÇÃO CRIADORA
de Henri Bergson
Bergson vê a vida como uma onda que se expande a partir do centro da vida orgânica na terra. Ela também abrange a espécie humana, mas o homem exerce um papel único no processo, pois nele se encontra a possibilidade da consciência. A consciência é a aquela visão fugaz que surge nos momentos de intuição, e que revela a possibilidade de uma evolução superior àquela que geralmente carrega o homem consigo. A única maneira de investigar essa possibilidade é afastar-se do pensamento conceitual e analítico e aproximar-se da consciência, que é uma força evolutiva.
Portanto, também é radical a diferença entra a consciência dos animais, mesmo dos mais inteligentes, e a consciência humana. Pois a consciência corresponde exatamente ao poder de escolha do ser vivo. A consciência é co-extensiva à margem de possibilidades de ação que envolve a ação efetiva: é sinônimo de criatividade e liberdade. ora, no animal, a criação nunca é mais que uma variação sobre o mesmo tema, que é sua rotina. Constrangido pelos hábitos da espécie, ele consegue, sem dúvida, ampliá-los por iniciativa própria, mas ele escapa do automatismo apenas por um instante, o tempo exato para criar um novo automatismo. Os portões de sua prisão se fecham tão logo se abrem. Forçando seus grilhões, ele consegue apenas distendê-los. No homem, a consciência rompe os grilhões. No homem, e somente no homem, a consciência se liberta. Toda a história da vida até o surgimento do homem foi a do esforço da consciência para elevar a matéria, bem da maior ou menor supressão da consciência pela matéria, que sobre ela insistia sempre em desmoronar. A empresa era paradoxal, se é que podemos falar aqui de outra maneira que não pela metáfora da iniciativa e do esforço. Mas a proposta era criar com a matéria, que é a própria necessidade, um instrumento de liberdade, produzir uma máquina que trinfasse sobre o mecanismo, e usar o determinismo da natureza para transpor as malhas da rede que esse mesmo determinismo tinha estendido. Mas em tudo, menos no homem, a consciência se deixou aprisionar pela rede cujas malhas tentava transpor: continuou sendo prisioneira dos mecanismos que ela mesma engendrou. O automatismo, que ela tenta levar na direção da liberdade, escapa e a arrasta para baixo. Ela não tem o poder de escapar, porque a energia que despendeu para realizar as ações é consumida quase por completo na manutenção do equilíbrio infinitamente sutil e essencialmente instável que ela ensejou na matéria. Mas o homem não apenas mantém a sua máquina como também é capaz de usá-la como lhe apraz. Sem dúvida, ele deve isso á superioridade de seu cérebro, que lhe confere a capacidade de criar um sem número de mecanismos motores, de opor incessantemente velhos e novos hábitos e de dominar o automatismo. Isto o homem deve à linguagem, que dá à consciência um corpo imaterial em que ela pode encarnar-se, evitando, desse modo, que ela habite exclusivamente corpos materiais, cujo fluxo logo a arrastaria e terminaria por engoli-la. Isto ele deve à vida social, que armazena e preserva esforços do mesmo modo como a linguagem armazena o pensamento, e fixa assim um nível médio ao qual os indivíduos precisam elevar-se já de saída. Esse estímulo inicial impede que o homem médio caia na inércia, ao mesmo tempo em que impele o homem superior a elevar-se ainda mais. Mas nosso cérebro, nossa sociedade e nossa linguagem são apenas os muitos sinais exteriores de uma única e mesma superioridade interior. Eles indicam, cada um à sua maneira, o êxito singular e excepcional que a vida logrou conquistar num dado momento de sua evolução. Eles expressam a diferença de gênero, e não apenas de grau, que separa o homem do restante do mundo animal. Eles nos permitem perceber que, enquanto todos os outros animais, ao chegar à extremidade do enorme trampolim em que a vida tomou impulso, desceram pela escada por acharem o salto muito grande somente o homem conseguiu saltar o obstáculo.
É nesse sentido muito especial que o homem é o “termo” e o “fim” da evolução. A vida, já o dissemos, transcende a finalidade como transcende todas as outras categorias. Ela é essencialmente uma corrente enviada através da matéria, extraindo o que pode dela. Não houve, portanto, nenhum plano ou projeto. por outro lado, há evidências abundantes de que o restante da natureza não existe em função do homem: lutamos como as outras espécies e, no passado, lutamos contra outras espécies. Outrossim, se a evolução da vida tivesse encontrado outros acidentes em seu percurso, e se, com isso, a corrente da vida tivesse se dividido de outra maneira, deveríamos ser, tanto física quanto moralmente, muito diferentes do que somos. Por estas diversas razões, seria um equívoco considerar que a humanidade, tal como a temos diante de nossos olhos, foi prefigurada pelo movimento evolutivo. Não se pode nem mesmo considerá-la o resultado de toda a evolução, pois a evolução se realizou em muitas linhas divergentes e, ao passo que a espécie humana está no fim de uma delas, outas linhas se seguiram, com outras espécies em seus fins. É num sentido bastante diferente que sustentamos ser a humanidade o fundamento da evolução.
Do nosso ponto de vista, a vida surge em sua totalidade como uma imensa onda que, partindo de um centro, expande-se para além e que, em quase toda a sua circunferência, é obstruída e convertida em oscilação: em um único ponto o obstáculo foi forçado a ceder e o impulso atravessou livremente. É esta a liberdade que a forma humana registra. Em tudo, exceto no homem, a consciência chegou a um beco sem saída; somente no homem ela prossegue em seu curso. O homem, então, dá continuidade ao movimento vital indefinidamente, embora ele não carregue consigo tudo o que a vida encerra. Outras linhas de evolução abrigaram outras tendências que a vida continha, das quais, uma vez que tudo se interpenetra, o homem sem dúvida reteve algo, mas muito pouco. É como se um ser vago e informe, a quem se pode chamar, como se queira, homem ou super-homem, tivesse tentado realizar-se, e o tivesse conseguido somente à custa de abandonar uma parte de si no caminho. As perdas são representadas pelo restante do reino animal e mesmo pelo reino vegetal, ao menos no que têm de positivo e superior aos acidentes da evolução.
Deste ponto de vista, as discordâncias cujo espetáculo a natureza nos oferece são singularmente enfraquecidas. O mundo organizado se torna como que o solo no qual teria de se desenvolver u o próprio homem ou um ser moralmente semelhante a ele. Os animais, por mais distantes que possam estar da nossa espécie, por mais hostis que nos sejam, não obstante têm se revelado úteis companheiros de jornada. Sobre eles a consciência descarregou todos os fardos que eventualmente carregasse pelo caminho, o que permitiu que fosse elevada, no homem, a alturas às quais se descortina, mais uma vez, um horizonte ilimitado.
É verdade que ela não somente abandonou fardos incômodos ao longo do caminho, mas teve também de descartar bens de valor. A consciência, no homem, é preeminentemente intelecto. Ela pode ter sido — e de fato parece ter sido — também intuição. A intuição e o intelecto representam duas direções opostas do trabalho da consciência: a intuição segue a direção da vida, enquanto o intelecto segue a direção contrária, encontrando-se, com isso, naturalmente em harmonia com o movimento da matéria. Uma humanidade completa e perfeita seria aquela na qual estas duas formas de atividade consciente alcançariam seu desenvolvimento pleno. E, entre essa humanidade e a nossa, podemos conceber qualquer número de estágios possíveis, correspondentes a todos os graus imagináveis de inteligência e de intuição. Nisso reside a parte contingencial da estrutura mental de nossa espécie. Uma evolução diferente poderia ter levado a uma humanidade ou ainda mais intelectual ou mais intuitiva. Na humanidade a que pertencemos, a intuição é, de fato, quase totalmente sacrificada em favor do intelecto. Parece que, para dominar a matéria e reconquistar a si própria, a consciência teve de exaurir a melhor parte de seu poder. Esta conquista, nas condições particulares em que foi realizada, exigiu que a consciência se adaptasse aos hábitos da matéria e se concentrasse toda a sua atenção sobre eles, para de fato determinar-se mais especialmente como intelecto. A intuição, entretanto, esta presente, embora vaga e, sobretudo, descontínua. Ela é uma lâmpada quase apagada, que de vez em quando apenas bruxuleia timidamente, no máximo por alguns instantes. Mas ela brilha onde quer que um interesse vital esteja em jogo. Sobre a nossa personalidade, sobre a nossa liberdade, sobre o lugar que ocupamos na totalidade da natureza, sobre a nossa origem e talvez também sobre o nosso destino, ela lança uma luz fraca e vacilante, mas que, não obstante, penetra nas trevas da noite em que o intelecto nos abandona.
A filosofia deve apreender estas intuições fugazes, que iluminam seu objeto apenas a intervalos espaçados, em primeiro lugar a fim de conservá-las, e, depois, para expandi-las e assim reuni-las em uma unidade. Quanto mais ela progredir nessa tarefa, mais poderá perceber que a intuição é a própria mente e, em certo sentido, a própria vida: o intelecto foi separado dela por um processo semelhante àquele que gerou a matéria. Assim se revela a unidade da vida espiritual. Reconhe-cemo-la somente quando nos situamos na intuição para daí passar ao intelecto, pois do intelecto jamais podemos passar à intuição.
Assim, a filosofia nos introduz na vida espiritual. E ela nos mostra ao mesmo tempo a relação entre vida do espírito e a vida do corpo.
O grande erro das doutrinas do espírito foi acreditar que, isolando a vida espiritual de tudo o mais, suspendendo-a o quanto possível acima da terra, estavam a protegê-la de todo e qualquer ataque, como se, com isso, não a estivessem simplesmente expondo ao risco de ser tomada como uma miragem! Certamente tais doutrinas têm razão em ouvir a consciência quando ela afirma a liberdade humana, mas o intelecto está lá, o que indica que a causa determina seu efeito, que o semelhante condiciona o semelhante, que tudo se repete e tudo é dado. Elas têm razão ema creditar na realidade absoluta da pessoa e em sua independência em relação à matéria, mas a ciência está lá, mostrando a interdependência entre a vida consciente e a atividade cerebral. Elas têm razão em atribuir ao homem um lugar privilegiado na natureza, em sustentar que há uma distância infinita entre ele e o animal; mas a história da vida está aí, fazendo-nos testemunhar a gênese das espécies pela transformação gradual, parecendo, como isso, reintegrar o homem na animalidade. Quando um forte instinto garane a probabilidade de sobrevivência pessoal, elas têm razão em não fechar os ouvidos à sua voz; mas s existem “almas” cpazes de vida independente, de onde vêm? Quando, como e por que elas entram neste corpo que vemos surgir, muito naturalmente, de uma célula mista originária dos corpos de seus pais? Todas estas questões permanecerão sem resposta; uma filosofia da intuição será uma negação da ciência e será, mais cedo ou mais tarde, varrida pela ciência se não se decidir a considerar a vida do corpo exatamente onde ela de fato está, no caminho que conduz à vida do espírito. Mas então ela não mais dirá respeito a seres vivos definidos. A vida como uma totalidade, desde o impulso inicial que a arremessa para dentro do mundo, parecerá uma onda que se ergue e é barrada por um movimento descendente e oposto, o da matéria. Na maior parte de sua superfície, a diferentes alturas, a corrente é convertida num vórtice pela matéria. Apenas num ponto determinado ela passa livremente, arrastando consigo o obstáculo que pesará em seu curso, mas não o deterá. Neste ponto está a humanidade; é nossa situação privilegiada. Por outo lado, esta onda ascendente é a consciência que, como toda consciência, encerra inúmeras potencialidades que se interpenetram e para as quais, portanto, nem a categoria de unidade nem a de multiplicidade são apropriadas, produzidas, como são, para dar conta da matéria inerte. Somente a matéria que ela carrega consigo e em cujos interstícios se introduz pode separá-la em individualidades distintas. E a corrente segue fluindo, correndo através das gerações humanas e subdividindo a si mesma em indivíduos. Esta subdivisão estava vagamente implícita nela, mas não poderia ter-se tornado clara sem a matéria. Assim, as almas estão continuamente sendo criadas, ainda que, em certo sentido, preexistam. Elas nada são senão pequenos córregos nos quais o grande rio da vida se subdivide ao fluir através do corpo da humanidade. O movimento da corrente é distinto do leito do rio, ainda que tenha de se adaptar a seu curso sinuoso. A consciência é distinta do organismo; ela anima, ainda que precise suportar suas vicissitudes. Assim como as possibilidades de ação indicadas por um determinado estado de consciência estão sempre começando a ser executadas nos centros nervosos, o cérebro está sempre subjacente às indicações motoras do estado de consciência; mas a intrdependência entre a consciência e o cérebro se limita a isto; o destino da consciência não está, neste sentido, vinculado ao destino da matéria cerebral. Em resumo, a consciência é essencialmente livre, ela é a própria liberdade; mas ela não pode passar pela matéria sem assentar-se nela, sem adaptar-se a ela. E esta adaptação é o que chamamos de “intelecção”; e o intelecto, voltando-se para a consciência ativa — isto é, livre — , naturalmente a faz caber nas formas conceituais em que está habituado a ver a matéria se encaixar. Ele, pontanto, sempre perceberá a liberdade como encessidade; sempre negligenciará a parcela de inovação ou criação inerente ao at livre; sempre substituirá a própria ação por uma imitaçã artificial, aproximativa, obtida pela composição do velho com o velho e do semelhante com o semelhante. Assim, do ponto de vista de uma filosofia que busca reabsorver o intelecto na intuição, muitas dificuldades desaparecem ou se tornam secundárias. Mas uma doutrina como esta não apenas facilita a especulação; ela também nos dá mais poder para agir e viver. Pois, com ela, deixamos de nos sentir isolados na humanidade, e a humanidade não mais aprece estar isolada na natureza que ela domina. Assim como o menor grão de areia está ligado a todo o nosso sistema solar, arrastado com ele naquele movimento indiviso de descida que é a própria materialidade, assim também todos os seres organizados, do mais humilde ao mais nobre, dos primórdios da vida aos nossos tempos, bem como em todas as partes e em todos os tempos, nada mais fazem que evidenciar um único impulso, inverso ao movimento da matéria e, em si mesmo, indivisível. Todos os seres vivos se agarram e todos cedem ao mesmo impulso tremendo. Os animais colocam-se sobre as plantas, os homens sobre os animais e a humanidade inteira, no espaço e no tempo, é um imenso exército galopando ao lado, à frente e atrás de cada um de nós, uma investida esmagadora, capaz de destruir toda resistência e afastar os mais formidáveis obstáculos, talvez até mesmo a morte.