O AMANHÃ
ASSIM FALOU ZARATUSTRA de Friedrich Nietzsche
Segundo Nietzsche, nossa condição presente é fragmentária e incompleta. nossas vidas são uma sequência de acidentes com uma unidade apenas acidental. Será que o futuro nos reserva mais do mesmo? Na visão de Nietzsche, a resposta é não. Temos a capacidade de nossa ação e um agir intencional e essencial, apenas não a utilizamos. Por meio do exercício deste tipo de vontade afirmativa, abraçamos nosso destino e nos tornamos fazedores de nosso próprio ser. E assim nos redimimos.
Quando Zaratustra um dia atravessa uma grande ponte, foi cercado pelos aleijados e os mendigos, e um corcunda lhe falou assim: “Vê, Zaratustra, as pessoa também aprendem contigo e passam a acreditar em tua doutrina; mas, para que acreditem inteiramente em ti, falta uma coisa: deves primeiro persuadir a nós, os aleijados. Aqui tens uma bela coleção deles e, em verdade, uma oportunidade mais que vantajosa. podes curar os cegos e fazer os coxos andar. E, daqueles que têm acumulado em excesso, talvez pudesses tirar um pouco. Seria este, acho, o meio correto de fazer com que os aleijados acreditassem em Zaratustra”.
Mas Zaratustra assim respondeu ao homem que lhe falara: “Quando alguém tira a corcunda do corcunda, está tirando seu espírito — assim diz o povo. E quando alguém devolve os olhos ao cego, ele vê demasiadas iniquidades no mundo e amaldiçoará aquele que o tiver curado. Mas aquele que faz o coxo andar causa-lhe o pior dos males, pois, podendo andar, seus vícios correrão à sua frente e o arrastarão — assim diz o povo a respeito dos aleijados. E por que Zaratustra não deveria aprender também com o povo quando o povo aprende com ele?
Mas isso é o que menos me importa desde que estou entre os homens: ver que este carece de um olho, aquele de um ouvido e um terceiro de uma perna, assim como outros perderam a língua, o nariz ou a cabeça. Já vi coisas piores, abomináveis, tantas coisas tão vis que não desejo falar delas. E com respeito a algumas coisas tampouco quero silenciar: pois há homens a quem falta tudo, exceto uma única coisa que têm em demasia — homens que não passam de um enorme olho, ou de uma enorme barriga, ou de qualquer outra coisa que seja enorme. Aleijados ás avessas, é como os chamo.
E quando abandonei meu eremitério e atravessei esta ponte pela primeira vez, não acreditei no que meus olhos viam, e olhei e voltei a olhar e finalmente disse: “Uma orelha” Uma orelha tão grande quanto um homem!” Olhei ainda mais de perto — e, de fato, embaixo da orelha algo se movia, algo desprezivelmente pequeno, ignóbil e fraco. E, sem nenhuma dúvida, a enorme orelha estava presa a uma haste frágil, pequenina — mas esta haste era um homem. Com uma lente de aumento, poder-se-ia reconhecer ali uma minúscula face invejosa, e também uma alma pequena e envaidecida dependurada na haste. As pessoas, entretanto, dissera-me que aquela orelha enorme não era apenas de um homem, mas de um grande homem, de um gênio. mas eu nunca acreditei no povo quando ele fala de grandes homens, e mantive minha crença de que aquele era um aleijado ás avessas, que tinha tudo de menos e uma única coisa demais”.
Quando Zaratustra acabou de dizer o que disse ao corcunda e àqueles de quem o corcunda era porta-voz e defensor, virou-se para seus discípulos com profundo desânimo e disse: “Em verdade, meus amigos, eu ando entre os homens como se andasse entre fragmentos e membros de homens. Isso é o mais terrível aos meus olhos, que eu encontre homens em ruínas e destroçados, como num campo de batalha ou matadouro. E, quando meus olhos se voltam do agora para o passado, sempre se deparam com a mesma coisa: fragmentos, membros e acidentes terríveis — mas nenhum homem!
O agora e o passado na terra — ai de mim, meus amigos, eis o que há de mais insuportável; e não saberia viver se não fosse um vidente do que está por vir: um profeta, alguém de vontade, um criador, eu mesmo um futuro e uma ponte para o futuro — e, pobre de mim, também eu, um aleijado nesta ponte — tudo isso é Zaratustra.
E vós também muitas vezes vos perguntastes: “Quem é Zaratustra para nós? Como devemos chamá-lo?” E, como eu, vós também vos respondestes com perguntas: “Será um prometedor ou um cumpridor? Um conquistador ou um herdeiro? Um outono ou uma relha? Um médico ou um doente que se curou? É um poeta ou é sincero? Um libertador ou um dominador? Bom ou mau?”
Caminho entre os homens como entre os fragmentos do futuro — do futuro que eu anuncio. Isso é tudo o que faço e me empenho por fazer em minha poesia: juntar e recompor numa Unidade o que é fragmento, enigma e acaso terrível. E como eu poderia suportar ser um homem se o homem não fosse também poeta decifrador de enigmas e redentor de acasos?
Redimir os que viveram no passado e recriar todo o “assim foi”, transformando-o num “assim eu quis” — somente a isso eu chamaria redenção. Vontade — esse é o nome do libertador e causador de alegria; isso eu vos ensinei, meus amigos. Mas agora, aprendei também isto: a própria vontade ainda é prisioneira. A vontade liberta, mas o que é que aprisiona até mesmo o libertador?
“Assim foi” — este é o nome do ranger de dentes da vontade e de sua mais secreta melancolia. Impotente diante do que está feito, ela é um furioso espectador de tudo o que é passado. A vontade não pode querer retroativamente; não pode destruir o tempo, e a avidez do tempo é sua mais solitária ansiedade.
O querer liberta; mas que meios há de criar a própria vontade para livrar-se da aflição e zombar de sua prisão? Louco, ai de nós, torna-se todo prisioneiro. E a redenção da vontade prisioneira vem-lhe também da loucura. Que o tempo não anda para trás, essa é a sua ira; “o que foi” é o nome da pedra que ela não consegue remover.
E assim, por ira e despeito, ela remove as pedras e vinga-se daqueles que não snetem, como ela, nem ira nem despeito. Assim, a vontade, a libertadora, torna-se maléfica; e em tudo o que é vulnerável à dor, ela se vinga da incapacidade de voltar atrás. Isso, e apenas isso, é “vingança”: a má vontade da vontade contra o tempo e seu “assim foi”.
Em verdade, uma grande insensatez habita nossa vontade, e tornou-se uma maldição para tudo o que é humano que essa insensatez tenha aprendido a ter espírito.
O “espírito de vingança”, meus amigos, tem sido até hoje tema da melhor reflexão dos homens; e onde quer que houvesse sofrimento, sempre se exigiu também o castigo.
Pois “castigo” é o nome que a própria vingança dá a si mesma; com uma mentira hipócrita e uma palavra apropriada, ela ria uma consciência tranquila para si.
Como existe sofrimento naqueles que querem, já que não podem querer retroativamente, a própria vontade e a vida toda deviam ser um castigo. E então uma nuvem após a outra foi encobrindo o espírito, até que finalmente a loucura proclamasse. “Tudo passa; por isso, tudo merece passar. E isso também é justiça, essa lei do tempo que o faz devorar seus próprios filhos”. Assim pregou a loucura.
“As coisas são moralmente ordenadas de acordo com a justiça e o castigo. Meu Deus, onde está a redenção do fluxo das coisas e do castigo chamado existência?” Assim pregou a loucura.
“Pode haver redenção se há justiça eterna? Por Deus, a pedra ‘assim foi’, impossível de ser removida: todos os castigos devem também ser eternos.” Assim pregou a loucura.
“Nenhum feito pode ser anulado: como ele poderia ser desfeito pelo castigo? Isto, é isto que é eterno no castigo chamado existência — que a existência tenha de tornar-se sempre um outro feito e uma outra culpa. A não se que a vontade por fim se redimisse a si mesma e o querer se transformasse em não querer”. Vós, porém, meus irmãos, conheceis esta fábula insana!
Eu vos afastei de tais fábulas quando vos preguei: “A vontade é criadora”. Todo “assim foi” é um fragmento, um enigma, um acaso lamentável, até que lhe diga a vontade criadora: “Mas assim eu o quis”. Até que a vontade criadora lhe diga: “Mas assim eu o quero; e assim hei de querê-lo!”
Mas a vontade já disse isso? E quando isso ocorrerá? A vontade já se desatrelou de sua própria loucura? A vontade já se tornou seu próprio redentor e mensageira de alegria? Acaso livrou-se do espírito de vingança e de todo o ranger de dentes? Se assim é, quem lhe ensinou a renconciliação com o tempo e algo mais elevado que toda reconciliação? Pois essa vontade, que é a vontade de poder, tem de querer algo mais elevado que toda reconciliação. Mas como? Quem poderia ensiná-la a retroceder?