O ANIMAL INACABADO
A GENEALOGIA DA MORAL de Nietzsche
Friedrich Nietzsche (1844–1900), filósofo e poeta alemão, foi um dos pensadores mais influentes do século XX. A falta de reconhecimento da genialidade de suas obras, desde O Nascimento da Tragédia (1872) até O Anticristo (1895), forçou-o a adotar uma forma mais impetuosa e pungente de pensamento. Não obstante, ele foi capaz de estudar as grandes questões metafísicas e morais, estéticas e religiosas antes de sofrer um colapso mental que o deixou inutilizado (1889), talvez causado pela sífilis.
Nietzsche escreve sobre a perda de uma certa presença com a qual vimos a este mundo. Esta presença nos permite viver no momento presente, mas, assim que começamos a desenvolver outras faculdades mentais, particularmente a memória, nossa capacidade de viver no tempo presente é sacrificada. Esse momento passa a ser obscurecido por nossas associações e experiências passadas. Num interessante aparte, Nietzsche propõe que o que comumente chamamos de moralidade deriva na verdade desta servidão à memória e serve para perpetuá-la.
I
Criar um animal com o direito de fazer promessas — não é este o problema paradoxal que a natureza colocou para si mesma com respeito ao homem? E não é este o verdadeiro problema do homem? Que o problema tenha de fato sido resolvido a um grau notável parecerá ainda mais surpreendente se fizermos plena justiça à intensa força contrária, a faculdade do esquecimento. O esquecimento não é meramente uma vis inertiae, como se afirma frequentemente, mas um dispositivo ativo de seleção — uma peneira — , responsável pelo fato de que aquilo que experimentamos e digerimos psicologicamente não vem mais à consciência, no estágio da digestão, do que o que ingerimos fisicamente. O papel desse esquecimento ativo é o de um zelador: fechar temporariamente as portas e as janelas da consciência; proteger-nos dos ruídos e da agitação que emitem nossos órgãos inferiores ao trabalharem contra ou a favor uns dos outros; introduzir um pouco de tranquilidade em nossa consciência de modo que dê lugar às funções e funcionários mais nobres de nosso organismo; responsáveis pelo controle e pelo planejamento. Esse zelador mantém a ordem e a etiqueta na casa da psique, o que de imediato indica que não pode haver felicidade, serenidade, esperança, orgulho e de modo geral nenhum “presente” sem o esquecimento. O homem em que essa peneira está estragada e inoperante é como um dispéptico ( e não meramente “como” um): ele não consegue dar conta de nada. […] Ora, este animal naturalmente desmemoriado, para quem o esquecimento representa um poder, uma forma vigorosa de saúde, criou para si mesmo uma potência oposta, a de lembrar, com a ajuda da qual, em certos casos, o esquecimento pode ser suspenso — especificamente quando é uma questão de promessas. Com isso não me refiro a um sucumbir puramente passivo às impressões passadas, à indigestão de ser incapaz de dar conta da promessa uma vez feita, mas antes a um ativo não querer fazer nada, um continuar a desejar o que um dia foi desejado, uma verdadeira “memória da vontade”; de modo que, entre a determinação original e de novas coisas, condições e mesmo atos volitivos pode ser interposto sem danificar a longa cadeia do querer. Mas o quanto tudo isso pressupõe! O homem que deseja dispor de seu futuro dessa maneira deve antes ter aprendido a separar a necessidade dos atos acidentais, a pensar de modo causal, a ver coisas distantes como se estivessem próximas, à mão, a distinguir meios de fins. Em resumo, ele deverá ter-se tornado não apenas calculador, mas ele próprio calculável, regular até para a sua própria percepção, se quiser garantir seu próprio futuro como faz o fiador.
II
Isto nos remete à longa história da origem ou gênese da responsabilidade. A tarefa de criar um animal capaz de fazer promessas envolve, conforme já vimos, a tarefa preliminar de tornar o homem até certo ponto regular, uniforme, igual entre iguais, calculável. A tremenda realização à qual me referi em Aurora como “o caráter costumeiro da moral”, aquele trabalho que o homem realizou sobre si mesmo por um longo período de tempo, recebe seu sentido e justificação aqui — mesmo apesar da brutalidade, tirania e estupidez associadas ao processo. Com a ajuda dos costumes e da camisa de força social, o homem foi, de fato, tornado calculável. Entretanto, se nos colocarmos no ponto final desse longo processo, em que a sociedade e o costume finalmente revelam seu verdadeiro propósito, descobriremos que o fruto mais maduro daquela árvore é o indivíduo soberano, igual apenas a si mesmo, com todos os costumes morais deixados bem para trás.
Este indivíduo autônomo, mais que moral ( os termos “autônomo” e “moral” são mutuamente excludentes), desenvolveu sua vontade própria e independente de longo alcance, que ousa fazer promessas; ele tem uma consciência orgulhosa e vigorosa do que logrou alcançar, um sentido de poder e de liberdade, de absoluta realização. Este homem plenamente emancipado, mestre de sua vontade, que ousa fazer promessas — como não teria ele consciência de sua superioridade sobre aqueles que são incapazes de se garantir por si mesmos? Pense em quanta confiança, quanto medo e quanta reverência ele inspira (todos os três totalmente “merecidos”) e em como, tendo esse governo soberano sobre si mesmo, ele legisla também sobre todas as criaturas de vontade mais fraca e menos confiável! Sendo realmente livre e possuidor de uma vontade persistente e de longo alcance, ele possui também uma escala de valores. Vendo os outros desde o centro de seu próprio ser, ele os honra ou desdenha. É natural para ele honrar seus pares fortes e confiáveis, todos aqueles que prometem como soberanos, rara e relutantemente; que são zelosos de sua própria confiança, cuja confiança é uma marca de distinção, cujas promessas de fato se sustentam, porque eles sabem que as cumprirão a despeito de todos os acidentes e a despeito do destino mesmo. Entretanto, ele reservará inevitavelmente um chute àqueles fanfarrões desprezíveis que prometem de maneira irresponsável e um soco àqueles mentirosos que quebram suas promessas no momento mesmo em que as proferem. Sua orgulhosa consciência do privilégio extraordinário que a responsabilidade confere penetrou profundamente e se tornou um instinto dominante. Do que ele chamará este instinto dominante, se algum dia se sentir compelido a dar-lhe um nome? Com certeza, ele o chamará de “sua consciência”.