O ANIMAL INACABADO
CAPÍTULOS INTERIORES de Chuang Tsé
Chuang Tsé (nascido por volta de 369 a.C) foi um pensador chinês discípulo de Lao Tsé. Em sua interpretação do caminho (Tao), atribui-lhe um sentido de incessante transformação, conferindo, assim, movimento a todas as relações que ele compreende. A compreensão de uma unidade essencial era, para ele, o caminho que leva à liberdade e à paz.
Como Heráclito, Chuang Tsé fala de um princípio oculto da verdade, o Tao. Por que ele permanece oculto e, no entanto, parece tão óbvio quando somos capazes de nos abrir para ele? Chuang Tsé sugere que somos enganados por uma compreensão parcial. não pensamos, não sentimos e não vemos com a totalidade de nós mesmos. Tendemos a basear nossos julgamentos em distinções que não submetemos a exame prévio. Diante disso, Chuang Tsé nos aconselha a relaxar, a tentar não fazer nada e deixar que o entendimento venha por si mesmo, em vez de fazer um enorme esforço para apreendê-lo.
— Se não sabes o que é benéfico e o que é prejudicial — disse Nieh Ch’ueh — , isto significa que o homem perfeito também não sabe?
— O homem perfeito é um ser espiritual — disse Wang I. — Mesmo que os grandes oceanos incendiassem, ele não sentiria calor. Se os grandes rios congelassem, ele não sentiria frio. E ainda que um raio terrível quebrasse as montanhas e o vento revolvesse as águas do mar, ele não teria medo. Sendo assim, ele se eleva sobre as nuvens e as forças do céu, cavalga sobre o sol e a lua e vagueia para além dos quatro oceanos. Nem a vida nem a morte o afetam. Que dizer de coisas de pouca monta, como perdas e ganhos?
Ch’u-ch’iao Tsé perguntou a Ch’ang-wu Tsé:
— Ouvi de meu grande mestre [Confúcio] que o sábio não se devota aos negócios do mundo. Ele não vai atrás de vantagens nem avita as perdas. Ele não gosta de buscar nada e não adere propositadamente ao Tao. Fala sem falar e não fala quando fala. Assim ele flutua acima deste mundo coberto de pó. Meu grande mestre considerava essa uma descrição grosseira do sábio, mas eu a considero o modo como opera o maravilhoso Tao. O que pensas disto, senhor?
— O que disseste teria deixado perplexo até mesmo o Imperador Amarelo — respondeu Ch’an-wu Tsé. — Como Confúcio pode ser competente o bastante para saber? Além do mais, tiraste uma conclusão precipitada. Vês um ovo e queres logo um galo cantando; vês um estilingue e logo queres assar a pomba. Supõe que eu te diga algumas palavras pelo que elas significam e tu as ouças pelo que elas significam. Que dizes disso? … O sábio tem o sol e a lua a seu lado. Ele segura o universo debaixo do braço. Ele mistura tudo num todo harmonioso, põe de lado tudo o que é confuso e obscuro e considera nobre o humilde. Enquanto a multidão labuta, ele parece estúpido e incapaz de discriminar. Ele harmoniza as disparidades de dez mil anos numa completa pureza. Todas as coisas são assim harmonizadas e se envolvem mutuamente.
Como posso saber se o amor à vida não é uma ilusão? E como posso saber se o ódio a morte não é como um homem que perdeu seu lar quando jovem e não sabe mais onde ele fica para poder retornar? Li Chi era filha do guarda da fronteira de Ai. Quando o Duque de Chin a raptou pela primeira vez, ela chorou até o colo de seu vestido ficar ensopado de lágrimas. Mas quando chegou à residência real, dividiu com o duque seu luxuoso leito e provou das iguarias, arrependeu-se de ter chorado. Como posso saber se os mortos não se arrependerão de ter desejado ardentemente a vida enquanto vivos?
Aqueles que sonham com o banquete podem lamentar na manhã seguinte, e aqueles que sonham com o choro podem sair para caçar ao amanhecer. Quando sonhamos não sabemos que estamos sonhando. Em nossos sonhos podemos até mesmo interpretar nossos sonhos. Somente depois que acordamos é que sabemos que estávamos sonhando. Finalmente, chega o grande despertar e, então, sabemos que a vida é um grande sonho. Mas os estúpidos acham que estão despertos o tempo todo e acreditam que o sabem perfeitamente. Somos nós governantes [honrados]? Somos pastores [humildes]? Que vulgaridade! Tanto Confúcio quanto tu estão sonhando. Quando digo que estiveste sonhando, eu também estou sonhando. Esse modo de mil gerações, fôssemos capazes de encontrar um grande sábio que pudesse explicar isso, seria como encontrá-lo em um intervalo tão breve de tempo como uma única manhã ou tarde.
Suponha que tu e eu discutíssemos. Se tu me derrotasses em vez de eu te derrotar, estarias tu realmente certo e eu realmente errado? Se eu te vencesse em vez de tu me venceres, estaria eu realmente certo e tu realmente errado? Ou estamos ambos em parte certos e em parte errados? Ou estamos ambos totalmente certos e totalmente errados? Como nenhum de nos sabe o que é certo, os outros estão naturalmente no escuro. A quem devemos chamar para arbitrar a disputa? Se chamássemos alguém que concordasse contigo, uma vez que já está de acordo contigo, como poderia ele arbitrar? Se chamássemos alguém que concordasse comigo, uma vez que já está de acordo comigo, como poderia ele arbitrar? Se chamássemos alguém que não concordasse com nenhum de nós dois para arbitrar, uma vez que já está em desacordo tanto comigo quanto contigo, como poderia ele arbitrar? Se chamássemos alguém que concordasse tanto comigo quanto contigo, uma vez que já está de acordo tanto comigo quanto contigo, como poderia ele arbitrar? De modo que, entre mim, tu e os outros, ninguém sabe o que é certo. Devemos esperar por outros ainda? os sons imensamente variados são tão relativos uns aos outros quanto não são relativos uns aos outros. Harmonizá-los com o funcionamento da Natureza e deixá-los seguir o processo de evolução infinita é o caminho para completar nosso tempo de vida.
— O que significa harmonizá-los com o funcionamento da Natureza?
— Dizemos que isto é certo ou errado e que é assim ou não é assim. Se o certo é realmente certo, então o fato de ser diferente do errado não deixa nenhuma margem pra discussão. Se o que é assim for realmente assim, então o fato de ser diferente do que não é assim não deixa nenhuma margem para discussão. Esquece a passagem do tempo (vida e morte) e esquece a distinção entre certo e errado. Relaxa no reino do infinito e, assim, permanece no reino do infinito.
O vulto pergunta à sombra: “Há um instante te movias e agora estás parada. Há um instante estavas sentada e agora te levantas. Por que instabilidade de propósito?”
“Dependo eu de alguma outra coisa para ser assim?”, respondeu a sombra. “Esse algo de que dependo também depende de outro algo? Dependo mais desse algo do que a cobra depende da pele que descartou ou a cigarra de suas novas asas? Como posso te dizer por que sou assim ou por que não sou assim?”
Certa vez, eu, Chuang Tsé, sonhei que era uma borboleta e estava feliz como borboleta. Estava consciente de que estava bem satisfeito comigo mesmo, mas não sabia que eu era Tsé. De repente, acordei e eis-me ali, visivelmente o Tsé. Eu não sei se era o Tsé sonhando que era uma borboleta, deve haver alguma distinção. [Mas um pode bem ser o outro.] Isto se chama transformação.