O ESPECTRO DO AMOR

astronautfloral
11 min readJan 10, 2024

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A AMIZADE de Aristóteles

Neste trecho da Ética a Nicômaco, Aristóteles discute a natureza da amizade. Embora amiúde consideremos a amizade o oposto do amor próprio, Aristóteles alega que isto não é verdade. Bem entendido, quando somos capazes de ter uma relação amorosa para conosco mesmos, abrimo-nos para o relacionamento com os outros. Justamente por isso, ainda que às vezes achemos que se feliz significa ter superado a necessidade de estar com os outros, Aristóteles demonstra que essa visão também é equivocada. A pessoa feliz é aquela que tem uma visão ampliada, que enxerga o papel essencial desempenhado pelos outros na manutenção de seu próprio bem-estar.

A NATUREZA DO VERDADEIRO AMOR PRÓPRIO

8. É uma questão também debatida se o homem deve amar mais a si mesmo ou a outras pessoas. Quem ama mais a si mesmo é criticado e chamado de ególatra, o que é usado como epíteto pejorativo. Diz-se que um homem mau parece fazer tudo em favor de si mesmo, que quanto mais ele o fizer pior ele será — e assim os homens o acusam, por exemplo, de não fazer nada espontaneamente — , ao passo que o homem bom age em nome da honra, e quanto mais ele age assim melhor ele é, agindo em favor do amigo e sacrificando seus próprios interesses.

Mas os fatos contrastam com esses argumentos, o que, aliás, não é de surpreender. Pois os homens dizem que se deveria amar mais o melhor amigo, e o melhor amigo é aquele que deseja o bem em si mesmo para o objeto de sua amizade, mesmo que ninguém fique sabendo; e estes atributos são encontrados sobretudo na atitude de um homem para consigo mesmo, e o mesmo ocorre com todos os outros atributos que definem um amigo; pois, como dissemos, é desta relação de si para consigo mesmo que todas as características da amizade passam para os semelhantes. Todos os provérbios também confirmam isto, por exemplo: “Uma única alma”, “O que os amigos têm é propriedade comum”, “Amizade é igualdade” e “O joelho é mais próximo que o queixo”, pois todas estas características são encontradas principalmente na relação de um homem consigo mesmo; ele é o melhor amigo de si próprio e, portanto, deve amar sobretudo a si mesmo.

É, portanto, uma questão razoável: qual das duas concepções devemos adotar, uma vez que ambas são plausíveis?

Talvez devêssemos distinguir estes argumentos uns dos outros e determinar até onde e em quais sentidos cada um deles é verdadeiro.

Pois, se apreendemos o sentido em que cada estudioso do assunto usa a expressão “amante de si mesmo”, a verdade pode vir a tornar-se evidente. Aqueles que usam o termo no sentido de censura imputam o amor-próprio às pessoas que abocanham o maior quinhão de riquezas, honras e prazeres carnais; pois isso é o que a maioria das pessoas deseja e empenha-se em conseguir, como se fosse a melhor de todas as coisas, o que é, também, a razão pela qual elas entram em disputa. Assim, aquelas que são ávidas de tais coisas satisfazem seus apetites e, em geral, suas emoções, o elemento irracional de suas almas; e a maioria dos homens é dessa natureza (daí a razão do epíteto vir a ser usado como é — seu significado tem origem no tipo prevalente de amor-próprio, que é mau); com justiça, portanto, os homens que neste sentido são amantes de si mesmos são censurados por serem assim. Que são aqueles que se dão preferência com respeito a objetos dessa espécie a quem a maioria normalmente chama de amantes de si mesmos, isto é coisa certa; pois se um homem estivesse sempre disposto a agir sobretudo com justiça, moderação ou de acordo com qualquer outra das virtudes e, em geral, estivesse sempre tentando garantir para si mesmo o caminho reto, ninguém diria que esse homem é amante de si mesmo ou o censuraria por isso.

Mas esse homem pareceria mais do que um amante de si mesmo; em todas as circunstâncias, ele atribui a si mesmo as coisas melhores e mais nobres, satisfazendo assim o elemento mais digno de comandar sua natureza e obedecendo-o em todas as situações; e, exatamente como uma cidade ou qualquer outro conjunto organizado é mais propriamente identificado com o elemento mais digno de estar no comando, assim também é o homem; e, portanto, o homem que ama e satisfaz esse elemento é mais do que qualquer outro um amante de si mesmo. Diz-se ainda de um homem que ele tem ou não tem autocontrole segundo a suposição de que isso seja o próprio homem; e as coisas que os homens fizeram com base no princípio homem; e as coisas que os homens fizeram com base no princípio racional são consideradas mais propriamente como seus atos próprios e voluntários. Que isto é o próprio homem, portanto, ou é mais do que qualquer outra coisa, está claro, como também que o homem bom ama sobretudo esta parte de si mesmo. Segue-se daí que ele é, mais do que qualquer outro, um amante de si mesmo, de um tipo diferente daquele que é objeto de censura, tão diferente quanto viver segundo o princípio racional é diferente de viver de acordo com os ditames da paixão, e desejar o que é nobre é diferente de desejar o que parece vantajoso. Aqueles, portanto, que se ocupam em grau excepcional de praticar ações nobres são aprovados e louvados por todos os homens, e se todos se empenhassem no que é nobre e fizessem todos os esforços para praticar atos nobres, tudo funcionaria perfeitamente para o bem comum e cada um teria assegurado para si os maiores bens, uma vez que a virtude é o maior de todos os bens.

Portanto, o homem bom deve ser amante de si mesmo ( uma vez que pela realização de atos nobres ele próprio se beneficiará, assim como beneficiará seus compatriotas), mas o homem mau não deve, pois, se o for, ele prejudicará tanto a si mesmo quanto a seus compatriotas, obedecendo como obedece a paixões vis. Pois o homem perverso, o que ele faz é o contrário ao que deveria fazer, mas o que o homem bom deve fazer ele faz; pois a razão e cada um de seus possuidores escolhe o que é melhor para eles, e o homem de bem obedece a sua razão.

É verdade que o homem bom também pratica muitas ações em favor de seus amigos e de seus país e, se for preciso, morre por eles; pois renunciará tanto à riqueza quanto às honras e, em geral, aos bens que são objeto de disputa, conquistando para si mesmo a nobreza, tendo em vista preferir um breve período de prazer intenso a um longo de desfrute moderado, um ano de vida digna a muitos anos de existência insípida e uma grande e nobre ação a muitas triviais. Ora, aqueles que morrem pelos outros alcançam sem dúvida tal resultado, e é portanto um grande prêmio o que escolhem para si mesmos.

Eles entregarão também suas riquezas sobre a condição de que seus amigos recebam mais; pois quanto o amigo ganha riquezas ele próprio se enobrecerá; assim (ao entregar suas riquezas), ele estará proporcionando o maior bem a si mesmo. O mesmo é verdadeiro com respeito à honra e aos cargos públicos; todas estas coisas ele sacrificará por seu amigo, pois isso é nobre e louvável para si mesmo. É com justiça, portanto, que ele é considerado bom, tendo em vista que ele escolhe a nobreza antes de tudo. Mas ele pode até mesmo renunciar a agir por seu amigo; pode ser mais nobre tornar-se a causa da ação do amigo do que ele próprio praticar a ação. Portanto, em todas as ações pelas quais os homens são louvados, o homem bom é visto como se atribuísse a si mesmo o maior quinhão do que é nobre. Neste sentido, portanto, como foi dito, o homem deve ser um amante de si mesmo; mas no sentido em que a maior parte dos homens o é, neste ele não deve ser.

POR QUE O HOMEM FELIZ PRECISA DE AMIGOS?

9. Discute-se também se o homem feliz precisa ou não de amigos. Afirma-se que os que são extremamente felizes e auto-suficientes não têm necessidade de amigos; pois têm as coisas boas e sendo, portanto, auto-suficientes, não precisam de mais nada, enquanto que um amigo, entendido como um outro eu, fornece o que o homem não é capaz de prover por esforço próprio. Daí o ditado: “Quando a Fortuna é generosa, para que servem os amigos? “Mas parece estranho atribuir-se todas as coisas boas ao homem feliz sem atribuir-lhe amigos, que são considerados os maiores bens exteriores. E se é mais característico do amigo fazer o bem a outrem do que receber o bem, se conferir benefícios é característico do homem bom e virtuoso e se é mais nobre fazer o bem aos amigos que a estranhos, o homem bom precisará de amigos a quem fazer o bem. É por isso que se pergunta se precisamos mais de amigos na prosperidade ou na adversidade, com base na suposição de que não apenas na adversidade o homem precisa de pessoas que lhe beneficiem, mas de que também na prosperidade ele precisa de pessoas a quem fazer o bem. Certamente também é estranho fazer do homem sumamente feliz um solitário, uma vez que ninguém escolheria tudo o que há no mundo sob a condição de ficar sozinho, pois o homem é um animal social, um animal cuja natureza é viver com seus semelhantes. Por isso, até o homem mais feliz vive com os outros, pois ele possui o que por natureza é bom. E é óbvio que é melhor passar a vida com amigos e pessoas de bem do que com estranhos ou pessoas encontradas ao acaso. Portanto, o homem feliz precisa de amigos.

O que dizem, então, os que defendem a primeira opinião e em que sentido eles estão certos? Será que a maioria das pessoas identifica os amigos com a utiidade? De tais amigos o homem sumamente feliz com certeza não tem necessidade, sendo já possuidor das coisas boas; nem precisa daqueles que se tornam amigos pelo prazeres que podem oferecer, ou apenas precisará destes numa proporção muito reduzida (pois sua vida, sendo agradável, não tem necessidade de prazeres adicionais); e, como ele não precisa de tais amigos, pensa-se que ele não tem necessidade de amigos.

Mas isso com certeza não é verdade. Pois afirmamos no princípio que a felicidade é uma atividade e que a atividade é obviamente algo que vem a ser e que não está presente desde o início como a propriedade de um pedaço de terra. Se (1) a felicidade consiste em viver e ser ativo e a atividade do homem bom é virtuosa e agradável em si mesma, como dissemos no princípio; e se (2) a posse de uma coisa é um dos atributos que a tornam agradável, e se (3) podemos contemplar melhor nossos semelhantes do que a nós mesmos e suas ações melhor do que as nossas próprias, e se as ações dos homens virtuosos que são seus amigos são agradáveis para os homens bons ( uma vez que ambos possuem os atributos naturalmente agradáveis); se é assim, o homem sumamente feliz terá necessidade de amigos deste tipo, uma vez que seu propósito é contemplar ações meritórias que são suas próprias ações, e as ações de um homem bom, que é seu amigo, possuem ambas estas qualidades.

Outrossim, pensa-se que o homem feliz deve viver aprazivelmente. Ora, se ele fosse um solitário, a vida seria dura para ele, pois sozinho não é fácil manter-se continuamente em atividade; mas com os outros e para com os outros é mais fácil. Com os outros, portanto, sua atividade será mais contínua e, em si mesma, mais agradável, como deveria ser para o homem que é sumamente feliz; pois um homem bom, enquanto bom, deleita-se nas ações virtuosas e aborrece-se com as ações vis, assim como um homem de ouvido musical se deleita com as notas perfeitas e se incomoda com as dissonantes. Um certo treino na virtude surge também com a companhia dos homens bons, como já disse Teógonis antes de nós.

Se examinarmos mais profundamente a natureza das coisas, um amigo virtuoso parece naturalmente desejável para um homem virtuoso. Porque aquilo que é bom por natureza, como dissemos, é, para o homem virtuoso, bom e aprazível em si mesmo. Ora, a vida é definida, no caso dos animais, pelo pode de percepção; no caso dos homens, define-se pelo poder de percepção ou de pensamento; e um poder (ou potência) é definido com referência á atividade correspondente, que é a coisa essencial; logo, a vida [humana] parece ser essencialmente o ato de perceber ou de pensar. E a vida está entre as coisas que são boas e aprazíveis em si mesmas, uma vez que ela é determinada e o ser determinado é da natureza do bom; e aquilo que é bom por natureza é bom também para o homem virtuoso ( razão pela qual a vida parece aprazível a todos os homens); mas este princípio não deve ser aplicado a uma vida perversa e corrupta ou a uma vida passada em sofrimento; pois tal vida é indeterminada, bem como seus atributos.

A natureza da dor tornar-se-á mais evidente no que se segue. Se a vida é em si mesma boa e aprazível ( o que assim me parece pelo simples fato de que todos os homens a desejam e particularmente os que são bons e sumamente felizes, pois para tais homens a vida é mais desejável e sua existência é a mais sumamente feliz); e se aquele que vê percebe que vê, e o que ouve percebe que ouve, e o que anda percebe que anda, e no caso de todas as outras atividades há algo semelhante que percebe que estamos ativos, de modo que, se percebemos, percebemos que percebemos e, se pensamos, percebemos que pensamos; e se perceber que percebemos ou pensamos é perceber que existimos ( pois a existência foi definida como perceber ou pensar); e se perceber que vivemos é em si mesmo uma das coisas aprazíveis (pois a vida é por natureza boa e perceber a presença do que é bom dentro de si é aprazível); e se a vida é desejável, e particularmente desejável para os homens bons, porque para eles a existência é boa e aprazível (porque eles se comprazem na consciência da presença neles do que é bom em si mesmo); e se como o homem virtuoso é para si mesmo, ele também o é para seu amigo (pois seu amigo é outro (si-mesmo”) — se tudo isso for verdade, considerando que a própria existência é desejável para homem, assim o é igualmente, ou quase, a existência de seu amigo. Bem, sua existência foi tida como desejável porque ele percebeu sua própria bondade, e tal percepção é aprazível em si mesma. Ele precisa, portanto, estar igualmente consciente da existência do amigo, e isto será alcançado no convívio mútuo e no convívio parece querer significar no caso do homem e não, como acontece com o gado, no pastar juntos num mesmo campo.

Se, portanto, a vida é em si mesma desejável para o homem sumamente feliz (uma vez que é por natureza boa e aprazível), e com a vida de seu amigo se dá algo bastante semelhante, um amigo será uma das coisas desejáveis. Ora, o que é desejável para ele, ele deve ter, ou será incompleto nesse sentido. O homem que desejar ser feliz terá, portanto, necessidade de amigos virtuosos.

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