O ESPECTRO DO AMOR
AS TRÊS PARTES DA ALMA de Platão
No seguinte trecho da República, Platão traça uma comparação entre as qualidades de que necessitamos para estabelecer boas relações sociais e as qualidades necessárias para viver internamente em harmonia. Na vida interior, na alma, ele distingue três elementos diferentes. Existe a dimensão racional ( a razão), a dimensão apetitiva ( o corpo) e a dimensão sensível ( as emoções). Comumente, encontramo-las em conflito mútuo, o que dificulta e desequilibra nossas relações com o outro. Consequentemente, para Platão, a investigação sobre como equilibrar as diferentes dimensões da alma humana deve ser realizada sempre em conjunto com a investigação sobre o modo de produzir relações estáveis e justas dentro do Estado.
Como sempre, Platão expõe seus argumentos em forma de diálogo.
— Não sejamos ainda tão categóricos — eu disse — , mas se, em juízo, esta concepção de justiça for verificada tanto no indivíduo quanto na cidade, não haverá mais nenhum lugar para a dúvida; se ela não for verificada, então devemos iniciar uma outra investigação. Concluamos primeiro a que iniciamos, como te lembras, sob a impressão de que, se pudéssemos examinar previamente a justiça em escala mais ampla, haveria menos dificuldade de discerni-la no homem. Este exemplo mais amplo pareceu-nos ser a cidade, e por isso fundamos uma cidade tão perfeita quanto possível, sabendo bem que na boa cidade a justiça seria encontrada. Apliquemos, portanto, o que aí encontramos ao indivíduo e, se as duas noções de justiça estiverem de acordo, ficaremos satisfeitos; se, porém, descobrirmos que a justiça é outra coisa no indivíduo, faremos outro julgamento da teoria. Talvez a fricção das duas concepções faça brilhar a luz da justiça; e, quando ela tiver se manifestado, nós a fixaremos outro julgamento da teoria. Talvez a fricção das duas concepções faça brilhar a luz da justiça; e, quando ela tiver se manifestado, nós a fixaremos em nossas almas.
— Tua proposição é metódica, Sócrates, façamos como dizes.
Continuei, então, a perguntar: — Quando duas coisas, uma maior e outra menor, são chamadas pelo mesmo nome, são elas semelhantes ou diferentes pelo fato de serem chamadas pelo mesmo nome?
— Semelhantes — respondeu Glauco.
— O homem justo será, então, se considerarmos apenas a ideia de justiça, igual à cidade justa?
— Sim, será.
— E uma cidade foi por nós considerada justa quando as três classes que a compõem desempenham rigorosamente as funções que lhe são próprias; e a consideramos também como sendo moderada, corajosa e sábia em razão de certas outras qualidades e tendências dessas mesmas três classes?
— É verdade — ele disse.
— E assim com respeito ao indivíduo; podemos supor que sua alma encerra os mesmos três princípios encontrados na cidade; e ele poderia ser corretamente descrito nos mesmos termos, se os articulamos da maneira devida?
— Certamente — ele respondeu.
— Mais uma vez, então, meu amigo, voltamos a nos deparar com uma questão fácil: saber se a alma tem ou não esses três princípios.
— Uma questão fácil? Não, Sócrates, de modo algum; é mais certo dizer, como diz o provérbio, que o caminho do bem é o mais difícil.
— Assim é — eu disse — , e não acho que o método que estamos empregando seja absolutamente adequado à solução precisa desse problema; o caminho verdadeiro é outro, e mais longo. Contudo, talvez cheguemos a uma solução em nada inferior ao nível da investigação anterior.
— Não podemos nos contentar com ela? — ele perguntou — ; na presente circunstância, sinto-me bastante satisfeito.
— Eu também — respondi — ficarei extremamente satisfeito.
— Pois então não desanimes, Sócrates, em tua investigação — ele disse.
— Não é necessário convir — prossegui — que em cada um de nós encontram-se os mesmos princípios e hábitos que há na cidade? Com efeito, é a partir do indivíduo que eles passam à cidade, pois de que outra maneira teriam chegado ali? Tomemos a qualidade da paixão ou do gênio: seria ridículo imaginar que esta qualidade, quando encontrada nas cidades, não seja derivada dos indivíduos que supostamente a possuem, como, por exemplo, os trácios, os citas e, em geral, as nações do Norte. E o mesmo pode ser dito do amor ao conhecimento, que é a característica especial da nossa parte do mundo, ou do amor pelo dinheiro, que pode, com igual verdade ser atribuído aos fenícios e egípcios.
— Exatamente — ele confirmou.
— Não há nenhuma dificuldade para se entender isso.
— Absolutamente nenhuma.
— Mas a questão não é assim tão simples quando passamos a questionar se esses princípios são três ou somente um; quer dizer, se existe em nós um princípio pelo qual conhecemos, outro pelo qual nos irritamos e um terceiro pelo qual desejamos satisfazer nossos apetites naturais, ou se toda a alma intervém em cada uma dessas operações — determinar isto é que é difícil.
— Sim — concordou — aí, reside a dificuldade.
— Busquemos, portanto, determinar se estes princípios são um só ou três diferentes.
— Como? — ele perguntou.
Respondi como se segue: — É evidente que a mesma coisa não pode, a um só tempo, na mesma parte e em relação ao mesmo objeto, agir ou sofrer uma ação com efeitos contrários. De sorte que, sempre que esta contradição ocorrer em coisas aparentemente idênticas, sabemos que elas não são realmente idênticas, mas diferentes.
— Muito bem.
— Por exemplo — prossegui — , pode uma mesma parte de uma coisa estar em repouso e em movimento ao mesmo tempo?
— Impossível.
— Coloquemos o problema em termos mais precisos — continuei — , para que não nos desviemos de nosso argumento. Supõe o caso de um homem que esteja parado, movendo somente as mãos e a cabeça, e supõe que alguém diga que este mesmo homem está em movimento e em repouso ao mesmo tempo — a este modo de falar deveríamos objetar, dizendo que apenas uma parte dele está em movimento enquanto a outra está em repouso.
— Muito verdadeiro.
— E supõe que se nos lançassem uma contra-objeção ainda mais refinada e sutil, traçando a requintada distinção de que não apenas partes dos piões, mas os piões inteiros girando com as pontas fixas no mesmo lugar, estariam em repouso e em movimento ao mesmo tempo ( e poder-se-ia dizer o mesmo com respeito a qualquer coisa que gire em torno de si no mesmo lugar), essa objeção não seria por nós admitida, uma vez que em tais casos não é nas mesmas partes que tais coisas estão em repouso e em movimento; dos piões, diríamos que possuem tanto um eixo quanto uma circunferência e que o eixo permanece imóvel, visto que não se inclina para nenhum lado, e somente a circunferência gira. Mas se, enquanto gira, o eixo se inclina ou para a direita ou para a esquerda, para frente ou para trás, então os piões não estão em repouso sob nenhum aspecto.
— É exato — ele respondeu.
— Portanto, nenhuma destas objeções deverá nos confundir, ou nos levar a crer que a mesma coisa, na mesma parte ou em relação ao mesmo objeto, possa ao mesmo tempo agir ou sofrer uma ação com efeitos contrários.
— Com certeza não, de acordo com meu modo de pensar.
— Não obstante — eu disse — , para que não sejamos compelidos a examinar todas as objeções deste tipo e provar exaustivamente que são falsas, por agora consideremo-nas absurdas e prossigamos com nosso entendimento; se, futuramente, este se mostrar falso, então nos afastaremos de todas as conclusões a que por ventura tivermos chegado a partir dele.
— Sim — ele disse — , este é o caminho mais apropriado.
— Bem — prossegui — , não admitirias que aprovação e desaprovação, desejo e aversão, atração e repulsão sejam todos opostos entre si, quer se trate de aos ou estados ( uma vez que isso não faz nenhuma diferença)?
— Sim — ele concordou — , são opostos.
— Bem — prossegui — , a fome, a sede e os apetites em geral, e ainda querer e desejar, tudo isso não situarias entre os primeiros termos dos pares de opostos já mencionados? Tu não dirias que a alma daquele que deseja está à procura do objeto de seus desejos, ou que ele está atraindo para si mesmo a coisa que deseja possuir, ou ainda que, quando alguém quer que algo lhe seja dado, sua mente, ansiando pela realização de seus desejos, intima seu desejo a alcançá-lo por um sinal de aprovação, como se lhe tivesse feito uma pergunta?
— É bem verdade.
— E que dirias da má vontade, da aversão e da ausência de desejo? Estas coisas não deveriam ser referidas à classe oposta, isto é, de repulsão e rejeição?
— Certamente.
— Admitindo que isso seja verdadeiro a respeito dos desejos em geral, suponhamos uma classe particular de apetites e, dentre estes, selecionemos a fome e a sede, como são chamados, que são os mais óbvios dentre eles. O que achas?
— Consideremos esta classe — disse ele.
— O objeto de um é a comida e o do outro a bebida?
— Sim.
— Aqui chegamos ao ponto principal: não é a sede o desejo que a alma tem de beber, e apenas de beber; não da bebida com qualquer outra qualificação, como quente ou fria, muita ou pouca ou, em uma palavra, bebida de uma determinada espécie: mas se a sede estiver acompanhada de calor, então o desejo será de beber algo frio; ou, se acompanhada de frio, de alguma bebida quente; ou, se a sede for excessiva, a quantidade de bebida desejada será grande; ou, se não for grande, a quantidade de bebida desejada será pequena: mas a sede pura e simples desejará pura e simplesmente a bebida, que é a satisfação natural da sede, assim como a comida é a da fome?
— Sim — ele confirmou — , o simples desejo é, como dizes, em todo caso pelo simples objeto, e o desejo qualificado pelo objeto qualificado.
— Mas aqui pode surgir uma confusão; e eu gostaria de me precaver contra um oponente que argumentasse que nenhum homem deseja somente bebida, mas uma boa bebida, nem simplesmente comida, mas uma boa comida, uma vez que o bom é o objeto universal do desejo e que, sendo a sede um desejo, necessariamente ela será o desejo de uma boa bebida; o mesmo sendo verdadeiro para todos os outros desejos.
— Sim — ele concordou — , o oponente poderia ter algo a dizer com isso.
— Entretanto, eu seria obrigado a sustentar que, em se tratando de relações, algumas têm uma qualidade associada a cada termo da relação, a cada coisa particular; outras são simples, sendo ambos os termos que a compõem também simples. Adverte, porém, que as coisas que têm com outras uma relação de quantidade ou de qualidade se referem a seu objeto sob este aspecto relativo, ao passo que, tomadas em si mesmas, referem-se aos objetos tomados também em si mesmos e despidos de suas qualidades acidentais.
— Não sei a que te referes.
— Bem, certamente sabes que o maior é relativo ao menor?
— Certamente.
— E que o muito maior é relativo ao muito menor?
— Certo — ele anuiu.
— E que o tempo mais longo é relativo ao tempo mais curto, e que o maior que há é relativo ao menor que há?
— Certamente — disse ele.
— E que o mesmo se dá com mais e menos e outros termos correlatos, como dobro e metade, ou ainda o mais pesado e o mais leve, o mais rápido e o mais lento; e também com frio e quente e quaisquer outros termos relativos. Isso não é verdade para todos eles?
— Sim, é.
— E o mesmo princípio não se aplica ás ciências? O objetivo da ciência é o conhecimento (supondo-se que esta seja a definição verdadeira), mas o objetivo de uma ciência em particular é um tipo particular de conhecimento; quero dizer, por exemplo, que a ciência da construção de casas é um tipo de conhecimento definido e distinto dos outros tipos de conhecimento e que, por isso, é chamado de arquitetura.
— Certamente.
— Será porque ela tem alguma qualidade particular que nenhum outro tipo de conhecimento tem?
— Deve ser.
— E ela tem essa qualidade particular porque tem um objeto determinado; será isso verdadeiro a respeito das outras artes e ciências?
— Sim, é.
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