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ÉTICA A NICÔMACO de Aristóteles
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é.
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem por que ama, nem o que é amar…Alberto Caeiro, excerto de ‘O Guardador de Rebanhos”
Pode-se dizer de Aristóteles (384–322 a.C.), o mais importante discípulo de Platão, que suas amplas incursões nos muitos aspectos do pensamento permeiam a história da filosofia desde o seu tempo até hoje. Mais de duzentas de suas obras foram preservadas. Seu método científico e analítico determinou os padrões de observação e de lógica por mais de um milênio. Livros sobre metafísica, ética, psicologia, história natural, política, estética e retórica compõem o corpus aristotelicum.
Para Aristóteles, questionar por que estamos aqui é questionar o propósito último da vida humana. Este, segundo ele, é a felicidade, pois “há um consenso” de que ser feliz é o que as pessoas mais buscam. Mas o que é a felicidade? Aristóteles rejeita as respostas que a equiparam ao prazer, à riqueza ou à fama e, em vez disso, situa-a na “boa vida”, na vida marcada pelo bem-estar. Estamos bem quando estamos realizando a missão para a qual nos destina nossa natureza. Qualquer que seja esta missão, ela exige que nos empenhemos incansavelmente numa investigação prática, que o filósofo chamou de atividade virtuosa.
4. Retomemos a nossa investigação e procuremos determinar, à luz do fato de que todo conhecimento e toda busca têm como propósito algum bem, o que afirmamos ser os objetivos da ciência política, e do bem supremo realizável pela ação. Verbalmente, há um consenso amplamente generalizado quando a este ponto, pois tanto o vulgo quanto os homens mais qualificados consideram ser esse fim da ação a felicidade, e identificam o bem viver e o bem agir com o ser feliz; mas eles divergem com respeito ao que é felicidade, e o vulgo não a considera do mesmo modo que os sábios. Pois os primeiros a consideram algo tão comum e óbvio quanto o prazer, a riqueza ou a fama, mas mesmo aí existem divergências, e não é raro que a mesma pessoa a identifique com diferentes coisas: com a saúde quando está doente, com a riqueza quando está sem recursos; contudo, cônscios de sua própria ignorância, eles admiram aqueles que proclamam algum ideal inacessível à sua compreensão. Ora, alguns têm pensado que, à parte esses muitos bens, há um outro, bom por si mesmo, e que também é a causa de todos os demais. Examinar todas as opiniões que foram colocadas seria talvez inútil; é suficiente examinar as mais difundidas ou aquelas que parecem mais defensáveis.
5. Retomemos, porém, nossa discussão do ponto em que nos desviamos. A julgar pela vida que os homens levam, a maioria dos homens, e os homens de tipo mais vulgar, parecem (não sem algum fundamento) identificar o bem ou a felicidade com o prazer; e essa é a razão pela qual eles amam a vida de prazeres. Pois existem, podemos dizer, três tipos principais de vida: a que acabamos de mencionar, a vida política e a vida contemplativa. Bem, a imensa maioria dos homens é evidentemente muito semelhante aos escravos, com uma preferência acentuada pela vida própria aos animais, mas eles baseiam essa predileção do fato de que muitas pessoas em posições elevadas cultivam os mesmos gostos de Sardanapalo.
Um exame dos principais tipos de vida demonstra que as pessoas de cultura superior e de índole ativa identificam a felicidade com a honra; pois essa é, por assim dizer, a finalidade da vida política. Mas isto parece demasiadamente superficial para ser o que estamos procurando, pois a honra depende mais de quem a confere do que de quem a recebe, enquanto o bem nos parece ser algo próprio de um homem e que dele não é facilmente arrebatado.
Além disso, parece que os homens buscam a honra para certificarem-se de que são bons. Ao menos, é pelos homens de sabedoria prática que eles buscam ser honrados, e entre aqueles que os conhecem, e em razão de suas virtudes; está claro, então, que, para eles ao menos, a virtude é mais excelente [do que a honra]. E talvez cegue-se mesmo a supor que a excelência ou virtude, mais do que a honra, é a finalidade política. Mas mesmo isto parece ainda insuficiente, uma vez que a posse da virtude parece de fato compatível com o estar dormindo ou com uma inatividade duradoura e, além disso com os maiores sofrimentos e desgraças. Mas a um homem que vivesse de tal maneira ninguém chamaria de feliz, a não ser que estivesse defendendo uma tese a todo custo.
Mas, quanto a isso, basta, pois o assunto já foi suficientemente tratado, até mesmo nas discussões correntes. Em terceiro lugar vem a vida contemplativa, que consideraremos mais adiante.
Quando à vida consagrado ao ganho, ela é assumida por compulsão e a riqueza não é, evidentemente, o bem que estamos buscando; pois ela é importante apenas em vista de outra coisa. E, assim, poder-se-ia antes tomar os objetos acima mencionados como fins, pois eles são amados por si mesmos. Mas é evidente que nem mesmo eles são fins; não obstante, muitos argumentos foram desperdiçados em defesa deles. Deixemos, portanto, este assunto de lado.
7. Voltemos ao bem que estamos procurando e indaguemos o que ele é, uma vez que não aprece igual nas diferentes ações e artes; é diferente na medicina, na estratégia e nas outras artes igualmente. Que é, então, o bem de cada uma delas? Certamente aquilo em vista de que tudo o mais é feito. Na medicina, a saúde; na estratégia, a vitória; na arquitetura, a casa; em qualquer outra esfera alguma outra coisa, e em todas as ações e propósitos ele [o bem] é a finalidade, pois é com ele em vista que os homens fazem tudo o que fazem. Por conseguinte, se existe uma finalidade para todas as coisas que fazemos, esta será o bem realizável pela ação e, se houver mais do que uma, serão os bens alcançáveis mediante ela. Vemos que, por um caminho diferente, o argumento chegou ao mesmo ponto; mas temos de tentar colocá-lo de maneira ainda mais clara.
Como há evidentemente mais do que uma finalidade, e nós escolhemos algumas dentre elas (por exemplo, riqueza, flautas e instrumentos em geral) em vista de outra coisa, é óbvio que nem todas as finalidades são absolutas; mas o bem supremo é evidentemente uma finalidade absoluta. Portanto, se existe apenas uma finalidade absoluta, ela será o que estamos buscando.
Dizemos que aquilo que por si mesmo merece ser buscado é mais absoluto do que aquilo que merece ser buscado em vista de outra coisa, e aquilo que jamais é desejável em vista de outra coisa é mais absoluto do que as coisas desejáveis tanto em si mesmas quanto em vista de outra coisa e, por isso, dizemos ser absoluto e incondicional aquilo que é sempre desejável em si mesmo e nunca em vista de outra coisa.
Ora, esse é o conceito que preeminentemente fazemos da felicidade. Ela é escolhida sempre por si mesma e não por qualquer outra coisa. Embora também a fama, o prazer, a razão e qualquer outra virtude sejam escolhidas por elas mesmas (pois, mesmo que de nada resultassem, ainda assim as escolheríamos), as escolhemos também visando a felicidade, julgando que por meio delas seremos felizes. Mas ninguém procura a felicidade em vista dessas virtudes, e tam-pouco, em geral, por qualquer coisa que não seja ela própria.
Quanto à auto-suficiência (autarquia), parece ocorrer a mesma coisa, pois o bem absoluto é considerado auto-suficiente. Porém, com auto-suficiente não nos referíamos a um homem como se bastasse a si próprio, levando uma vida solitária, mas também aos pais, filhos, esposa e, em geral, seus amigos e concidadãos, uma vez que o homem nasceu para viver em sociedade. Mas algum limite tem de ser posto nesse sentido, pois se ampliarmos nossa necessidade para os ancestrais e descendentes e amigos de amigos, estaremos diante de uma sucessão infinita.
Examinaremos, portanto, essa questão numa outra ocasião; por ora, definimos como auto-suficiente aquilo que em si mesmo a torna a vida desejável e sem carências. E assim entendemos ser a felicidade; além disso, a consideramos como a mais desejável de todas as coisas, não apenas uma coisa boa entre outras — pois se assim fosse ela tornar-se-ia obviamente mais desejável pelo acréscimo do mais insignificante dos bens; pois o que é acrescentado torna-se um excesso de bens, e quanto maior o bem mais desejável ele será. A felicidade é, portanto, algo absoluto e auto-suficiente, sendo também a finalidade [última] da ação.
Presumivelmente, entretanto, dizer que a felicidade é o bem supremo parece uma banalidade, e uma explicação mais clara do que ela seja se faz necessária. Esta explicação talvez fosse possível se antes pudéssemos determinar a função do homem. Pois, exatamente como ocorre com o flautista, o escultor ou qualquer outro artista — e em geral com tudo o que tem uma função ou atividade em que o bem e o “bem feito” residem na função -, o mesmo ocorreria com o homem se ele tivesse uma função. Teriam, então, o carpinteiro e o curtidor certas funções e atividades e o homem nenhuma? Terá o homem nascido sem nenhuma função? Ou como os olhos, as mãos, os pés e, em geral, todas as partes do corpo têm evidentemente sua função própria, poder-se-ia afirmar que o homem tem, de modo semelhante, uma função à parte de todas essas? Qual poderá, então ser ela?
A vida parece ser comum até mesmo às plantas, mas estamos buscando o que é peculiar ao homem. Excluamos, portanto, a vida vegetativa. A seguir, haveria a vida da percepção, mas essa também parece ser compartilhada pelo cavalo, pelo boi e por todos os animais. Resta, pois, a vida ativa do elemento que tem um princípio racional; desta, uma parte tem tal princípio no sentido de ser-lhe obediente, e outra no sentido de possuí-lo e de exercer o pensamento. E como a “vida do elemento racional” também tem dois sentidos, temos de esclarecer que a vida no sentido da atividade é a que nos interessa aqui; pois esta parece ser o sentido mais apropriado do termo. Ora, se a função do homem é uma atividade da alma que segue ou implica um princípio racional, e se dizemos que “fulano” tem uma função e que “tal pessoa boa” tema função, que é a mesma em espécie, como [dizemos] por exemplo um tocador de lira e um exímio tocador de lira, e assim incondicionalmente em todos os casos, sendo a eminência com respeito à excelência acrescentada ao nome da função (pois a função do tocador de lira é tocar lira e a de um exímio tocador de lira é tocá-la bem); se é realmente assim (e afirmamos que a função do homem é um certo tipo de vida e que essa é uma atividade ou ações da alma aqui implicam um princípio racional; e que a função de um bom homem é desempenhá-las bem e com nobreza, e que uma ação é bem realizada quando é realizada de acordo com a excelência que lhe é própria; se realmente assim é), o bem humano se nos afigura como uma atividade da alma em consonância com a excelência e, se houver mais de uma excelência, de acordo com a melhor e mais acabada.
Mas temos de acrescentar “numa vida plena”. Pois uma andorinha só não faz verão, nem tampouco um só dia; e assim também um só dia ou um curto período de tempo não faz um homem feliz e venturoso.
A FELICIDADE É ALCANÇADA PELA APRENDIZAGEM OU PELO HÁBITO?
É ENVIADA POR DEUS OU OCORRE POR ACASO?
9. Por esse motivo também se pergunta se a felicidade é alcançada pela aprendizagem, pelo hábito ou por algum outro tipo de adestramento, ou se ela é adquirida por obra de alguma providência divina ou, ainda pelo acaso. Bem, se há alguma dádiva divina, e a mais divina, considerando que dentre todas as coisas humanas ela é a melhor. Mas essa questão é talvez mais apropriada a outra investigação; entretanto, mesmo que a felicidade não seja uma dádiva divina, resultando da virtude [excelência] ou de um processo de educação ou adestramento, ela parece estar entre as coisas mais divinas; pois aquilo que é o prêmio e o propósito da virtude parece ser a melhor coisa do mundo, além de algo divino e abençoado.
Ela será, nesse sentido, também muito comum a todos; pois todos os que não foram prejudicados em seu potencial para a virtude podem alcançá-la por meio de certa disciplina e diligência. Mas, se é preferível ser feliz dessa maneira a ser feliz por acaso, é possível que os fatos sejam assim, uma vez que tudo o que depende da ação da natureza é por natureza tão bom quanto pode ser, e de modo semelhante, tudo o que depende da arte ou de qualquer causa racional, especialmente se depende da melhor de todas as causas. Confiar ao acaso aquilo que é melhor e mais nobre um arranjo muito imperfeito.
A resposta à pergunta que estamos fazendo é evidente também pela definição de felicidade; pois foi dito que ela é uma atividade virtuosa da alma, uma atividade de certo tipo. Quanto aos outros bens, alguns têm necessariamente de preexistir como condições para a felicidade, e outros são naturalmente co-operantes e úteis como instrumentos. E pode-se constatar como isso é consoante com o que dissemos no princípio, a saber, que o ojbeitvo da vida política é o melhor dos fins, e que a ciência política empenha-se sobretudo em fazer com que os cidadãos tenham um certo caráter, a saber, bom e capaz de praticar ações nobres.
É natural, portanto, que não chamemos o boi, o cavalo ou qualquer outro animal de feliz, uma vez que nenhum deles é capaz de participar de tal atividade. Por essa razão, tampouco um menino é feliz, pois ele não é ainda capaz de tais atos, devido à sua pouca idade; e os meninos que são considerados felizes estão sendo congratulados em razão das esperanças que depositamos neles. Porque é preciso, como dissemos, não apenas a virtude completa, mas também uma vida completa, uma vez que muitas mudanças ocorrem na vida, bem como todo tipo de acidentes, e os mais afortunados podem cair em grandes desgraças na velhice, como se diz ter ocorrido com Príamo no Ciclo Troiano. E ninguém que tenha vivido tais vicissitudes e tido um fim tão desditoso é considerado feliz.