QUEM SOU EU?
O SONHO DE SIR LANCELOT de Howard Pyle
Sir Lancelot cavalgou pelo resto do dia sem dar com nenhuma aventura, até quase ao anoitecer, quando chegou a um morro deserto coberto apenas de moitas de tojo. Ali, em meio àquele ermo, avistou uma antiga capela em ruínas e disse pra si mesmo: “Aqui vou descansar pelo resto da noite”. Assim, cavalgou em volta de toda a capela, procurando por uma porta que o levasse para dentro, mas não conseguiu encontrar nenhuma, apenas janelas altas, muito acima do chão. Então, Sir Lancelot disse: “Muito estranha esta capela, que não tem porta alguma, apenas janelas tão altas que por elas não consigo entrar. Agora vou descansar aqui e descobrir qual é o significado deste lugar”.
Assim dizendo, apeou do cavalo e deitou-se sob um espinheiro não muito longe dali.
Bem, enquanto Sir Lancelot ali jazia, uma sonolência começou a descer sobre ele e, apesar de ainda não conseguir dormir, era como se já estivesse adormecido, pois não conseguia mexer nem pés nem mãos. Entretanto, tinha consciência de tudo o que se passava à sua volta, como se estivesse completamente desperto, porque sabia dos vultos escuros e silenciosos no céu, completamente salpicado de um incrível número de estrelas; sabia também de seu cavalo remoendo o capim ao seu lado na escuridão, e do vento que soprava em seu rosto e ondeava a ponta de seu manto no silêncio da noite. De todas estas coisas ele sabia e, contudo, não conseguia mover por sua própria vontade nem um único fio de cabelo.
Em pouco tempo deitado naquele estado, ele sabia que algumas pessoas se aproximavam da capela na escuridão, pois ouvira vozes e o ruído das patas dos cavalos avançando pela estrada. Assim, em pouco tempo, chegaram ao lugar onde ele estava um cavaleiro e um escudeiro. E o cavaleiro estava gravemente ferido, pois sua armadura fora quebrada e despedaçada num combate. E o escudeiro o segurava na sela, pois, se não fosse pela força dos braços e mãos de seu criado, ele já teria caído, prostrado, no chão.
Então, enquanto dormia acordado, Sir Lancelot ouviu o cavaleiro dizer ao escudeiro:
-Floradaine, estamos perto da capela? Pois meus olhos estão falhando e não consigo ver…
E o escudeiro respondeu, lastimoso:
-Sim, meu senhor, ei-la-ali! Aguentai mais um pouco e logo estareis lá.
Com isso, o escudeiro puxou as rédeas e, erguendo seu senhor da montaria, apeou-o do cavalo. O cavaleiro gemeu de dor ao ser desmontado. Respirando com dificuldade, perguntou:
-Floradaine, vês alguma luz?
E o escudeiro respondeu:
-Ainda não, meu senhor.
E, de novo, depois de algum tempo, o cavaleiro voltou a perguntar:
-Já vês alguma luz?
E o escudeiro voltou a responder:
-Ainda não, meu senhor.
E, de novo, passado um outro instante, o cavaleiro perguntou pela terceira vez:
-Floradaine, ainda não vês nenhuma luz?
E desta vez ele apenas murmurou as palavras, como fosse seu último suspiro. Então, num súbito arrebatamento, exclamou o escudeiro:
-Sim, senhor, agora vejo uma luz!
Tudo isso Sir Lancelot contemplou como se sonhasse acordado. E, apesar da escuridão da noite, viu tudo claramente, como estivesse em pleno sol do meio-dia. Pois viu que o rosto do cavaleiro estava branco como cera pura, e que o suor da morte lhe caía em gotas sobre a testa. E viu que o escudeiro era jovem e belo, e que dourados cachos de cabelo lhe caíam sobre os ombros. Então, quando o escudeiro disse ter avistado uma luz, Sir Lancelot viu que as janelas da capela estavam iluminadas desde dentro por uma luz azul pálida, como se o dia raiasse ali dentro. E ouviu vozes cantando, a princípio muito fracas e distantes, depois crescendo e crescendo à medida que a luz da capela se intensificava. E aquelas vozes entoavam uma melodia tão doce e arrebatadora que fazia o coração derreter-se como em agonia.
Então as paredes da capela se abriram como uma porta, e uma luz brilhou com tamanha intensidade que iluminou a face daquele cavaleiro moribundo e do pajem que o secundava. Ao mesmo tempo, o canto irrompia em alto volume, como uma trovoada.
Em seguida surgiu da capela uma espada reluzente, e duas mãos brancas a empunhavam, mas Sir Lancelot não pôde ver o corpo a que pertenciam. E atrás da espada surgiu um cálice, e duas mãos belas e brancas o seguravam, mas Sir Lancelot tampouco pôde ver o corpo a que pertenciam. E o cálice parecia irradiar uma luz de brilho tão ofuscante que era como se olhasse para o sol brilhando, resplandecente em sua glória.
Então Sir Lancelot soube que era o Santo Graal, o objeto de sua busca, e lutou com toda as suas forças para despertar, mas não conseguiu. E lágrimas jorraram de seus olhos e escorreram como rios por sua face. Ainda assim, não conseguiu acordar; continuou aprisionado no sono.
E o cálice avançou na direção do cavaleiro, mas o cavaleiro não tinha forças para estender a mão e tocá-lo. O escudeiro agarrou o braço do cavaleiro e o ergueu, e ergueu também a mão do cavaleiro para que ela tocasse o cálice.
E então foi como se Lancelot contemplasse a virtude do Graal irromper e atravessar a mão do cavaleiro ferido, atravessar o braço e penetrar o corpo. Pois viu que o sangue parou de jorrar do cavaleiro ferido e que a cor retornou à sua face, e que a luz voltava a seus olhos e o vigor a seu corpo.
E então o cavaleiro se levantou e ajoelhou diante do Graal, juntou as mãos e rezou diante do Graal.
Lentamente, a luz do Graal, tão intensa, começou a evanescer. Primeiro, desapareceu a espada. Depois, as mãos que a empunhavam. Depois, ainda por um breve instante, o Graal irradiou uma luz fraca e pálida, e depois também ele desapareceu, e tudo ficou escuro como antes.
Assim, Sir Lancelot contemplou a visão do Graal, mas como numa visão de sonho, conforme acabo de relatar. E as lágrimas continuaram a jorrar de seus olhos, pois ele não conseguia despertar para contemplá-lo com olhos despertos.
Depois disso, o cavaleiro e o escudeiro se aproximaram do local onde Sir Lancelot estava deitado, e o escudeiro perguntou a seu senhor:
-Meu senhor, quem é este homem e por que ele dorme com todos esses milagres à sua volta?
E o cavaleiro disse:
-Este cavaleiro é um grande pecador e seu nome é Sir Lancelot do Lago.
E o escudeiro perguntou:
-Como ele pecou?
Ao que o cavaleiro respondeu:
-Ele pecou assim: tinha uma linda e bondosa dama por esposa, mas preteriu-a por causa da Rainha Guinevere. Então, sua esposa o deixou e foi embora. Logo deu à luz Galahad. No parto, deu também sua vida. Assim, Sir Lancelot traiu sua esposa e, por causa dessa traição, jaz agora adormecido, e não mais pode despertar até irmos embora deste lugar.
O escudeiro disse então ao cavaleiro:
-Meu senhor, vede. Este cavaleiro tem um cavalo bom e forte. Pegai este cavalo e deixai o vosso no lugar dele. Pois este cavalo é forte e cheio de vida, e o vosso está gasto e cansado de tantas lutas.
E disse o cavaleiro:
-Tomarei para mim este cavalo.
Depois que foram embora, Sir Lancelot espreguiçou-se e acordou. Teria achado que tudo o que vira fora um sonho, se não visse ali o cavalo gasto e cansado do cavaleiro, e se não percebesse que seu cavalo tinha desaparecido. Então, gritou, em grande agonia de alma: “Senhor, meu pecado me traiu!” E, com isso, precipitou-se feito um louco, buscando encontrar uma entrada para a capela, mas em vão.
Assim, quando o dia amanheceu, ele montou o cavalo gasto e cansado que o cavaleiro lhe deixara e cavalgou para longe daquele lugar, de volta para a floresta. E sua cabeça estava baixa, caída sobre o peito. Quando entrou na floresta e na cela do eremitério, desfez-se da armadura e ajoelhou-se diante do Eremita da Floresta e a ele confessou todos os seus pecados. E o Eremita da Floresta absolveu-o desses pecados, e disse:
-Fica em paz, meu filho. Pois, ainda que não possas contemplar o Graal em tua carne, que Deus te perdoe por esses pecados que tanto pesam sobre tua alma.
Sir Lancelot ergueu-se, purificado de sua confissão. Deixou sua armadura onde estava e tomou para si o hábito de um anacoreta. E foi-se embora daquele lugar para os confins mais remotos da floresta, e ali viveu em cavernas e ermos, alimentando-se de bagas e frutas silvestres. E ali viveu por muito tempo, até sentir-se seguro de que Deus lhe havia perdoado. E só então retornou para seus pares. Mas jamais, depois daquele dia, foi visto sorrindo.